Com o início deste novo ano, lembrei do criador da metodologia do Presencing, Otto Scharmer, com quem estive há cerca de dois meses em São Paulo, que se refere sempre ao “mundo de transformações aceleradas e globais” em que vivemos. O conferencista do MIT define crise como um momento em que se tem que deixar para trás algo velho, de forma a receber algo novo, ou seja, um ponto de ruptura. Nada mais adequado para esta época do ano, quando todos olhamos com esperança para os doze meses que estão por vir.
Há sempre, em cada um de nós, o desejo de deixar algo para trás e de mergulhar, com coragem, em um novo ciclo. No entanto, nem sempre é isso o que acontece. Muitas vezes, não só na vida pessoal, mas também na profissional, repetimos padrões, deixando de acessar o novo que tanto desejamos. Preocupados com o passado e ansiosos pelo futuro, perdemos a oportunidade que o momento presente nos oferece. Viramos tarefeiros, tentando dar conta de mais atividades do que uma agenda normal pode suportar.
A aceleração do ritmo de vida do mundo atual é um fato, mas, se queremos aproveitar o melhor do novo ano, temos que mudar algo em nossas ações, renovar o cotidiano. Atentar para o momento presente é um bom começo. Usufruir de um café com um colega de trabalho, das histórias contadas pelos membros da equipe ou dos desafios que surgem a cada dia é uma das dádivas da presença. E também é um ponto importante da metodologia criada por Scharmer, chamada de “Presencing”, palavra que mistura presença e sentimento. O caminho do Presencing, presença e emoção, é contínuo e desafiador, mas compensa-nos com o o prazer das descobertas que emergem quando melhoramos a nossa relação conosco e com o outro.
Entrevistei o professor Otto Scharmer para saber um pouco mais sobre o Presencing e descobrir melhores formas de disseminar a metodologia. Publico minhas perguntas na íntegra, como uma forma de inspirar quem deseja e ousa trilhar caminhos inovadores, conectando-se ao melhor que guarda dentro de si e a todos que o rodeiam. Não me ative a conceitos, sobre os quais há bastante informação no site
www.presencing.com, mas a curiosidades que tenho sobre a prática da metodologia e seus reflexos, especialmente nas organizações.
Otto Scharmer, Mônica Alvarenga e Marion Goodman, durante programa realizado em novembro de 2012, em São Paulo.
O movimento coletivo é o que realmente conduz à mudança, mas, muitas vezes, ele se inicia a partir de uma experiência pessoal da liderança com a Teoria U. Nesses casos, o líder entende o movimento e conduz o grupo pelo processo de transformação. Essa compreensão por parte do líder é uma pré-condição para o sucesso da aplicação da Teoria U?
A transformação individual não é um pré-requisito para o movimento coletivo de mudança. É claro que é importante e interessante que os líderes tenham experimentado o processo em um nível pessoal anteriormente, mas eu já vi muitas transformações no comportamento, na consciência e em capacitação de pessoas, individualmente, que só aconteceram porque a comunidade ou organização de que faziam parte passou por uma profunda mudança.
Quase que por definição, crise é um momento em que se tem que deixar para trás algo velho de forma a receber algo novo. Eu percebo que, quando uma situação dessas é realmente enfrentada por um grupo ou uma comunidade, todos acessam uma consciência mais profunda a partir da qual começam a agir. Eu acho que temos várias evidências disso. Muitas pessoas, quando perguntadas por momentos em que atuaram a partir de um nível de consciência mais profundo, relatam experiências onde tiveram que deixar algo, ou situações limítrofes, semelhantes ao que chamamos de crise. O mesmo acontece com a sociedade como um todo, que vive um tempo de intensas rupturas ambientais e sociais.
Acho que essa distinção entre o individual e o coletivo é muito importante, mas, algumas vezes, quando há uma crise, os líderes surgem espontaneamente, a partir dela, para conduzir o processo.
Há uma demanda para que se traduza o momento do “presencing” objetivamente, bem como que se explique de forma mais concreta o que significam termos recorrentes em seu livro “Teoria U”, como “conexão com a Fonte” e “futuro emergente”. Como podemos facilitar esse entendimento por parte de lideranças acostumadas a atuarem a partir de “padrões do passado”, para usar um termo também comum em seu livro?
Presencing não é uma metodologia que possa ser imposta ou simplesmente propagandeada às pessoas. Na verdade, eu diria que é impossível explicar o que é Presencing a quem não experimentou isso em sua própria vida. No entanto, o que descobri em meu trabalho e em minhas pesquisas é que há muito mais gente que vivenciou, mesmo sem saber, um momento de Presencing em suas vidas do que se pode imaginar. Elas têm a experiência e depois esquecem-na, porque é muito diferente dos padrões conhecidos.
Podemos, então, criar um ambiente onde as pessoas possam se recordar dessas experiências e do que já aprenderam com elas. Podemos criar um contexto para isso fazendo-as contar suas próprias histórias. E o ponto inicial para conectar pessoas em torno de tudo isso é sempre o mesmo e não tem nada de teórico. Tem a ver, sim, com a aplicação do processo de Presencing, que começa pela escuta. Um agente de transformação ou um líder não tem que pregar sobre a Teoria U, mas começar a advogar a seu favor através de uma escuta mais profunda.
Talvez, possa começar escutando sobre os momentos em que as pessoas, em sua própria jornada organizacional, experimentaram uma ruptura, ou seja, uma abertura para o futuro, o que ocorre em uma situação em que mais do mesmo simplesmente não é uma opção. É quando o momento nos pede que paremos de fazer algo para fazer outra coisa, que ainda não sabemos o que é. Isso é uma ruptura, que promove a abertura para algo que está prestes a acontecer mas que ainda é desconhecido. É neste momento que a Teoria U pode ser aplicada.
Nas organizações, comunicação é um dos maiores desafios para as lideranças, muitas das quais reclamam que não são compreendidas por suas equipes. De acordo com a Teoria U, a qualidade da atenção ao outro é o que determina os resultados que se obtém coletivamente. Em seu livro, você exemplifica isso com a qualidade da escuta e a demonstração do quanto se pode aprofundá-la. O que as organizações podem fazer para melhorar a comunicação e consequentemente as relações internas?
A maioria dos líderes pensam que sabem escutar, eu afirmo que não. Grande parte, quando escuta, carrega mentalmente seus próprios argumentos e só para de fazê-lo imediatamente antes de eles próprios falarem. Escutar verdadeiramente vai além da escuta factual: inclui também a escuta empática e a geradora. Trata-se de escutar o que está sendo dito e o que não está sendo dito, percebendo o que está para acontecer. E é a qualidade dessa escuta que determina a qualidade de comunicação, o que é claramente um ponto chave para as lideranças. Como líder, tenho que criar situações onde possa levar as pessoas à ação, através de boas perguntas, por exemplo.
Falando de maneira geral, uma boa comunicação é um bom diálogo. E isso deve seguir alguns critérios. Grande parte do que as empresas, estruturalmente, e os líderes, pessoalmente, fazem nos sistemas que conhecemos é má comunicação. E eu defino má comunicação por algumas características, como a unilateralidade do emissor para o receptor; a linearidade, num caminho longo que não permite o feedback; e a ausência do diálogo.
A boa comunicação é o oposto: bilateral, flui em duas vias; cíclica, o que permite que se entre na conversação em diferentes e repetidos pontos, criando a possibilidade de feedback e a certeza de que a comunicação não é um fim em si mesma, mas parte de uma conversação mais ampla; e, finalmente, dialógica e autorreflexiva, abrindo espaço para que o sistema possa enxergar e refletir sobre si mesmo. Diálogo não se resume a pessoas falando umas com as outras: vai além e cria espaços para reflexões. Na verdade, criar e sustentar esse tipo de ambiente é uma das funções primordiais dos líderes, mas raramente desempenhada.
Você enumera três segmentos, referindo-se às relações que temos com a natureza, com os outros e conosco. Este último segmento, chamado de espiritual, despertou minha atenção, porque, segundo afirma, é onde está a causa do suicídio, que, hoje, responde por três vezes mais mortos no mundo do que o homicídio ou as guerras. Esses dados são relevantes, mas o assunto ainda não está sendo tão discutido nas organizações como os demais. Por que?
Eu fiz a distinção entre os segmentos ecológico, social e espiritual, e este último trata da relação que mantemos conosco, e isso é difícil de ver. Os sintomas de desequilíbrio nesse campo são, em sua maioria, invisíveis. Entre eles, estão o burnout, a depressão e o suicídio, que estão começando a ser discutidos, mas não com a amplitude em que estão afetando as pessoas. Os fatores que levam a esses sintomas não aparecem para o público, mas seus efeitos são inquestionáveis. Provavelmente, não trazemos esse assunto para as organizações por vergonha. Para muitos, ser acometido por um desses sintomas significa não estar indo ao encontro dos valores contidos em alguns estereótipos que a sociedade ainda sustenta. E isso não é fácil.
Os segmentos social e ecológico também levaram muito tempo para serem incluídos nas agendas das organizações. Eu diria que a sociedade brasileira avançou bastante nas duas últimas décadas, nessa discussão. Mas esse terceiro divisor, o espiritual, é muito sutil e calcado no autoconhecimento. Para reconhecê-lo, a sociedade precisará de mais tempo. Ele está relacionado às nossas sombras, por isso, não basta saber que existe.
Se eu faço algo que degrade o meio ambiente, por exemplo, eu só preciso abrir meus olhos e ver o impacto negativo e destrutivo da minha ação. O mesmo acontece no campo social: eu só tenho que ir a uma favela para ver o impacto da segmentação social. Já no espiritual, onde está o cenário de destruição? Está dentro de mim mesmo, dentro de minha própria alma, e, para reconhecê-lo, preciso acessar uma fonte mais profunda de conhecimento, que é o autoconhecimento. Isso não é ensinado nas escolas, e, porque é ignorado nos sistemas educacionais, infelizmente, também é ignorado no que ensinamos nas organizações, mesmo nos programas de treinamento de lideranças.
Por isso, normalmente leva mais tempo para desenvolvermos esse tipo de conhecimento, que é a consciência de quem eu realmente sou como indivíduo e de quem posso me tornar na minha jornada de vida. Sem isso, não conseguimos ver com clareza a dimensão espiritual. No entanto, vivemos um período da história em que a consciência dessa dimensão está se tornando muito mais compartilhada do que há quatro ou cinco anos.
Você acha que há algum paradoxo na necessidade em se resgatar práticas milenares como a meditação com o propósito de se atingir um estado de presença ou de abertura capaz de acessar o futuro emergente a que se refere?
Não estamos apenas resgatando práticas antigas. Nós, como seres humanos, temos empreendido uma jornada onde, de um jeito ou de outro, migramos de uma consciência holística, como era chamada no passado, para algo que se aproxima de uma consciência científica, em que estudamos e criamos diferentes tipos de conhecimentos, capazes de serem testados e de se relacionarem com nossas próprias experiências de vida. Nesse contexto, a ciência e a tecnologia criaram um ambiente social onde há muita pressão e excesso de informações. Então, é praticamente impossível conseguirmos momentos de quietude.
Por isso, o que estamos propondo agora não é um retorno ao passado, mas uma utilização dessa consciência científica para investigar aspectos mais sutis da experiência humana e não apenas dados e reações visíveis. E, para fazer isso, temos que entrar em momentos de silêncio, para apurar nossa percepção. Temos que nos tornar algo como “faixa preta” perceptivo, transformando-nos em mestres altamente treinados em coletar e sintonizar em informações. O silêncio intencional é um das formas de se chegar a esse ponto. Quando lidamos com as fontes profundas de conhecimento universais, claro que teremos a influência de toda a sabedoria gerada por diferentes tradições deste Planeta. Ela é uma grande fonte para todos nós. O que nós tentamos fazer é nos conectarmos a ela e trazê-la para junto de nós, à luz da ciência.
A outra grande diferença em relação ao passado é a de que vivemos em uma comunidade global, como indivíduos e instituições. Deparamo-nos com desafios singulares, limites e oportunidades que, de uma forma muito mais radical do que outrora, desafiam as formas de compreensão existentes e colocam-nos em situações onde temos que abandonar antigas estruturas e conectarmo-nos a novas possibilidades. Esse tipo de ruptura e as mudanças resultantes também não aconteciam com tanta intensidade em outras eras. É uma outra motivação para a mudança.
Enquanto, em tradições antigas, as pessoas usavam práticas de meditação e concentração como uma forma de beneficiarem a si mesmas; hoje, eu diria que essas práticas são quase mandatórias para as lideranças contribuírem verdadeiramente com suas equipes. Sem um nível maior de consciência, dificilmente faremos frente aos desafios com que nos deparamos como uma comunidade global.
Como você vê o futuro da Teoria U? O que almeja quando vê mais e mais pessoas envolvidas com a metodologia de Presencing?
Com essa metodologia, somos parte de um movimento global que surge para agrupar as dimensões do meio-ambiente, inovação e consciência pessoal. É um movimento pessoal, mas pragmático e coletivo ao mesmo tempo. Acho que há muitas e muitas pessoas que estão, de fato, tentando conectarem-se a comunidades e organizações que trabalham com a Teoria U. Para mim, esse é um movimento que está surgindo da forma certa, no momento certo. Não temos como endereçar questões que surgem neste século sem ações como essas.