A cultura da mentira perde terreno
“Em seu livro Gaiola aberta, o senhor conta que Juscelino Kubitscheck teve um enfarte e vocês esconderam. Como foi isso?
É. Tivemos que esconder durante quase um mês que o presidente havia tido um enfarte. Fingi ser Juscelino, ao entrar em um helicóptero com o chapéu dele e até acenei para os jornalistas. O Geraldo Carneiro [1] teve que falsificar a assinatura de Juscelino em documentos oficiais. Ele imitava bem a assinatura do presidente. Foi difícil, mas algumas coisas tinham que ser feitas. O presidente estava doente e tínhamos que poupá-lo. Escondemos a situação e até inventamos notícias.
E esses documentos permanecem com a assinatura dele em vez da de Juscelino?
Exato.
O presidente concordou com isso?
Concordou.
Ele tinha prévio conhecimento do que estava sendo assinado?
Não, não tinha, não.
Ele soube que o senhor botou o chapéu e se passou por ele?
Soube. Achou muita graça e até brincou comigo: “Você está usando chapéu gelot?” – que era o chapéu da moda.”
O diálogo faz parte de uma entrevista do comunicador Jorge Duarte, excelente, e o escritor Autran Dourado, que comandou a assessoria de imprensa de JK. Está no livro No planalto com a imprensa, imperdível, que reúne entrevistas com porta-vozes do governo Juscelino a Lula. Hoje, tal prática seria impossível. Por quê? De um lado, as assessorias de governo se profissionalizam. Há uma tendência, crescente, para levar a prática a precisão e a transparência na informação. São, muitas vezes, maiores que as redações. Maiores e mais eficientes. A tese que se afirma já que se existem problemas, estes devem ser clarificados, admitidos, tornados públicos.
A própria Presidência da República trabalha, agora, com bases cada vez mais profissionais, agrega cada vez maior número de profissionais de jornalismo e comunicação. No próprio planalto com a imprensa há um precioso depoimento de Antonio Britto, que foi porta-voz de Tancredo Neves, relatando os bastidores da crise que se abriu com a doença e morte do presidente que escondeu uma grave doença na expectativa de tomar posse. São fatos para se guardar na memória, não esquecer. Britto considerava impossível que a imprensa não fosse municiada como informações e trabalhou com rigor na montagem de uma infraestrutura técnica, no cuidado para que as informações fossem verdadeiras e a imprensa, por sua vez, procurou ser cristalina. Evidentemente, cuidou de separar o que era público do que era privado. Mas não mentiu, não manipulou. Tanto que nunca foi revelada nenhuma inconsistência no seu trabalho. E não se pode esquecer que naquela época os militares ainda estavam no poder.
Nos idos JK, como admite Dourado, a imprensa funcionava como um partido político de oposição. Se formos olhar com lupa, a essência não mudou muito, mas no dia a dia é muito diferente. Há um maior compromisso com os fatos e, a despeito do conteúdo ideológico, próprio do regime democrático, imprensa não pode fazer ficção. Precisa de fidelidade cristalina ao que acontece. A diferença é que hoje existem centenas e centenas de jornalistas investigando tudo que acontece com o presidente e seus ministros, que o dinheiro público é visto como propriedade pública e que, um dado novíssimo, a lei começa a funcionar. É isso que aqueles que professam a militância da mentira esquecem. O fato, a verdade factual, é o cetim que envolve o diálogo, fonte e jornalista. Jornalistas erram? E como erram, mas o problema maior não está no erro jornalístico. Este pode ser corrigido, pode ser superado. O problema maior encontra-se na mentira oficial, na cultura da mentira. Essa particularidade tem os dias contados. Os jornalistas confrontam informações, pesquisam em documentos, empenham-se em descobrir as contradições dos acontecimentos. Sim, as contradições. Se uma informação é contraditória, as contradições vêm à público. E o público torna-se um tribunal diferente do tribunal oficial. Junto ao público não há recurso. Julga-se de imediato, sentencia-se de imediato. Reputações levam anos para serem construídas. Despencam como castelos de cartas. Reputação e imagem fundiram-se. A perda de uma significa a perda da outra. Pode encerrar carreiras. Destruir empresas, se for no âmbito das corporações.
Para os jornalistas, hoje, não existem mais segredos. Aquele véu de sigilo, a lembrar os tradicionais gabinetes de psicanálise, se volatilizou, sobretudo com as chamadas redes sociais. Editores não controlam mais informações, muito menos assessores de imprensa. Esconder uma doença de uma autoridade ou de uma personalidade pública por quase um mês é coisa do passado. Falsificar documentos pode levar à destituição do cargo. Não há mais lugar para amadorismo. Autran Dourado é um escritor de ponta, faz parte da fina flor brasileira, mas era um profissional da ficção, não do real. Fez com que o real se tornasse irreal. É muito diferente dos assessores dos dias atuais. Se o real não corresponder ao real, a verdade, cedo ou tarde, virá a público. Os assessores sabem dessa peculiaridade. Sabem que se fosse diferente, não haveria democracia e o olho não poderia olhar o sol porque dele seria diferente. Governantes e governados, nesse aspecto, são iguais: todos, por lei, têm direito a serem informados com transparência. Todos precisam olhar o sol e se sentem igual diante do sol que ilumina a realidade. Por lei escrita e não escrita. Esse o rito democrático que está vencendo a guerra com a cultura da mentira. A comunicação existe para partilhar a informação.
¹Secretário do Presidente JK
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