Número Zero
O "Amanhã", jornal que nunca circulou no belo e atualíssimo romance de Umberto Eco, está aí, cada vez mais presente no cotidiano. Na mídia impressa, nas redes sociais, nas rádios e nas televisões, enfim, por toda parte onde a comunicação se insinua, o que não faltam são os intermináveis exercícios de ficção que vão ganhando contorno de verdade: dossiês, boatos que vestem os trajes de gala das verdades inquestionáveis, insinuações, notícias falsas, desavenças artificiais, campanhas para desacreditar adversários, frases que parecem isentas, mas que não são, histórias inventadas... São tantos os artifícios para demolir reputações, criar clima favorável ao descrédito da democracia.
Como reagir? Como o moderno comunicador pode contribuir para a defesa da verdade, pelo menos a verdade factual? O livro de Umberto Eco se desenrola no ano de 1992, tendo como pano de fundo a "Operação Mãos Limpas" na Itália que, a exemplo da nossa "Lava Jato", jogou muitos dos considerados ricos e poderosos na cadeia, golpeando diretamente a máfia e multidões de supostos intocáveis. Aqui, o drama que se amplifica no cotidiano tem como alvo o impeachment da presidente Dilma e a exclusão das esquerdas do processo político. É um processo de nítido ressentimento, mas será que é percebido assim pela população? Será que o comunicador, na sua grande maioria, percebe as consequências de um golpe de estado para um país que tenta ser um respeitável interlocutor internacional? Será que avalia o seu significado num ambiente onde a democracia tornou-se um valor universal?
O livro de Eco foi definido como uma espécie da manual de mau jornalismo. Na realidade, não é bem assim. É um manual, sim, de como usar o jornalismo para manipular a iludir a opinião pública. A expressão "mau jornalismo" fica um tanto deslocada porque pode ser "mau jornalismo", mas é um jornalismo pensado, com estratégia definida. Serve ao "mau", mas o mau social, no sentido da ilusão. É, contudo, uma parte do jornalismo que não pode ser desconsiderada, nem muito menos subestimada. Como reage o leitor diante de uma avalanche de notícias negativas contra, por exemplo, um governo democrático?
Se um parlamentar é acusado de ter contas na Suíça, desmente, mas logo é desmentido pelas autoridades suíças, o que fazer? Teoricamente, nada a fazer. As versões precisam corresponder aos fatos. Mas essa é a teoria. A prática é outra: a prática ensina a negar, negar, negar. Cabe ao cidadão descobrir onde se encontra a verdade. Cabe ao assessor alertar para a teimosia dos fatos e da verdade que sempre vai aparecer. Para quem manipula, é diferente: a desonestidade é a regra, não a exceção. Mas é preciso ver com clareza: é uma desonestidade pensada, calculada, afirmada e reafirmada com o propósito de tornar-se honestidade, se ser virtuosa.
É assim que nascem os golpes: golpes de estado, golpes de interesse pessoal, golpes dos "honestos desonestos", para usar uma expressão do Eco. Na comunicação contemporânea, assim, parecem existir duas ou três alternativas para não cair nesse ninho de serpentes da desonestidade. Uma, é tomar o caminho da ética prática, sem concessões às manipulações. A segunda relaciona-se com a desconfiança. É preciso checar tudo que possa soar muito verdadeiro, muito espetacular. Soma-se a ideia de que a comunicação existe para tranquilizar as pessoas, não para intranquilizá-las. São desafios antigos que se tornam novos por força do poder multiplicador das tecnologias.
Assim, o media training (treinamento de relacionamento com a mídia) se torna mais uma definição de posturas do que apenas técnicas. Hoje, não basta apenas saber fazer. É preciso, igualmente, saber como e por que fazer. A memória coletiva pode ser iludida, mas não por muito tempo. Essa é a peça sensível do intrincado mosaico da realidade: se a postura é progressista, a favor dos fatos, da transparência, por limitada que seja, é certo que a comunicação de qualidade irá prevalecer. E o número zero do bem comum irá circular. Sempre.
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