Que história é essa?
por Luiz Fernando Brandão e Paulo Henrique Bittencourt*
A narração de histórias marcou a trajetória da sociedade desde tempos imemoriais e foi essencial para sua evolução, ao ajudar a preservar a memória e estimular a imaginação e a inventividade de indivíduos e grupos. A imagem de homens, mulheres e crianças sentados ao redor do fogo, compartilhando as vivências do dia e evocando o passado recente ou remoto, ainda é realidade em grupamentos humanos que costumamos chamar de primitivos, e também em comunidades civilizadas que lograram preservar suas raízes e costumes. Suas histórias são sua história, sua maior riqueza e legado, sua mais importante construção: a prova definitiva de que existem e, conectados por laços genuínos de interdependência, têm e comungam um lugar no mundo.
Dando um salto de séculos, e por ora deixando de lado seu papel na formulação da história oficial, entendida como versão institucional dos fatos, as narrativas tiveram e continuam a ter importância fundamental nas sociedades industriais para diferenciar e valorizar produtos e serviços e buscar a atenção e preferência do cidadão-consumidor para determinada marca. Quem nunca ouviu falar de uma companhia fundada no quartinho apertado de um universitário americano ou na garagem da tia de um menino-inventor? Ou da empresa que saiu de uma localidade desconhecida de um país que poucos sabem o nome para ganhar o mundo? Ou do refrigerante cuja fórmula original continha cocaína e em seus primórdios era apregoado pelas qualidades terapêuticas?
São tantas e tantas histórias que, em tempos recentes, vemos crescer a apropriação da expressão em inglês storytelling para denominar esse recurso de marketing e comunicação em que a “contação” (entre aspas mesmo, pois, apesar de estar na moda, a palavra não consta do vocabulário ortográfico da língua portuguesa) de casos é um meio – e muitas vezes um fim em si mesma – de seduzir, encantar, emocionar e, em primeiro plano, despertar o interesse de consumidores e stakeholders (outro termo de origem inglesa, este para designar as chamadas “partes interessadas”: pessoas e/ou instituições que, de forma mais ou menos direta, têm interesses em jogo na operação de uma atividade industrial e/ou comercial).
Mas a ciência da construção e gestão da marca, o branding, e a busca de diferenciação de produtos e serviços por meio de narrativas construídas para este fim, diferente do que se pode pensar, não é nada recente. Segundo Douglas Rushcoff, no seu instigante livro Life Inc., Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), ministro de Estado de Luís XIV, foi pioneiro nessa prática ao tratar de valorizar os produtos ligados ao território francês, diante da competição com produtos de países vizinhos que obtinham de suas colônias no além-mar um fluxo de riquezas a que a França não tinha acesso. “Os modismos ditados pela França têm de ser a resposta francesa às minas de ouro da Espanha no Peru”, disse.
No livro, Rushkoff conta que, na visão de Colbert, o importante era que as pessoas na França e no resto do mundo considerassem de qualidade insuperável os produtos ali produzidos e dali exportados. E que isso tinha menos a ver com qualquer atributo intrinsecamente superior do que com o modismo puro e simples: era tudo uma questão de forma, não de substância. O ministro tentou convencer o rei a residir no palácio do Louvre, mas Luís XIV preferia Versailles, que Colbert tratou de transformar em vitrine para o vinho, a champanhe, a culinária, os móveis, os espelhos e, acima de tudo, a moda da França: afinal, os dignitários estrangeiros que visitavam o palácio ditavam a moda em seus próprios países, e com isso representavam uma oportunidade imperdível para o marketing boca-a-boca pelo resto da Europa. Mas isso é história.
De volta às narrativas, o termo storytelling diz muito sobre essa estratégia: to tell implica, em princípio, um agente ativo, o narrador, e outro passivo, o ouvinte ou espectador. E a decisão, ou poder, sobre o conteúdo da narrativa, seja ela estória (story) ou história (history), está integramente nas mãos do primeiro. Se assim não fosse, não haveria o conceito de que a história oficial é sempre a versão dos vencedores, dos dominadores. E, não por acaso, é cada vez mais desacreditada. Uma expressão desse encantamento e revalorização dos fatos sobre as versões oficiais é o sucesso editorial de obras recentes dedicadas a resgatar os fatos e recontar a história, como os best-sellers dos jornalistas Eduardo Bueno e Laurentino Gomes – que abordam, com base em cuidadosa pesquisa, desde o descobrimento do Brasil e o período colonial até a chegada da corte portuguesa e o primeiro império.
Só que, assim como no caso das “histórias oficiais”, a técnica da narrativa tradicional, quando aplicada ao discurso institucional, perdeu eficácia e credibilidade, pois o contato com a “vida real”, cada vez mais facilitado pelas tecnologias de obtenção e compartilhamento de informações, acaba anulando o efeito da comunicação.
Pernas curtas – Em algumas filosofias orientais, é a energia resultante de nossas ações, boas ou más, ao longo de sucessivas encarnações, que determina as condições, mais ou menos favoráveis, de nossa próxima passagem por este mundo. Ou seja, toda ação tem uma reação correspondente, e nada fica sem consequência – o famoso aqui se faz, aqui se paga. Esse conceito, o carma, pode muito bem ser aplicado ao universo das marcas.
Empresas que estabelecem interações negativas com o mercado, seja pela má qualidade do produto e/ou da assistência técnica, pela forma como tratam os empregados, fornecedores, investidores e a comunidade, ou pelo descaso com o impacto ambiental de suas atividades, geram desconfiança, têm de recorrer a narrativas falsas e inadequadas e, por fim, são punidas com a perda de clientes e receitas. Já as marcas que promovem interações positivas angariam confiança, têm discursos genuínos e consistentes, e conquistam a credibilidade e a tão desejada lealdade dos que utilizam seus produtos e serviços.
Essa analogia foi muito bem explorada por Craig Davis, criador do Brandkarma, um “sistema aberto, democrático e transparente de avaliação” que tem como proposta influenciar positivamente as marcas e contribuir para sua sustentabilidade. Além de classificar as empresas com base em três critérios (qualidade do produto, responsabilidade social e cuidado com o ambiente), o usuário pode dar sugestões de melhoria e compartilhar suas percepções pelas redes sociais. Vale conhecer em www.brandkarma.com.
O mesmo princípio se estende à atividade das relações públicas, ainda tão estigmatizada, e com razão, como a arte de distorcer a verdade em proveito próprio, como certa vez observou, em entrevista à revista Imprensa, o diretor da faculdade de jornalismo da Universidade Columbia, Victor Navasky. Mas a mentira tem pernas curtas, como bem sabem as marcas vitoriosas e os profissionais de comunicação esclarecidos. Validadas pela sabedoria popular e pelo imenso potencial de fogo, a favor ou contra, das atuais tecnologias da informação e relacionamento, aos poucos ganham força, nas organizações, as cabeças que defendem posturas mais abertas e menos arrogantes na condução de temas sensíveis e na resolução de conflitos.
Ou seja, também na gestão da reputação definitivamente é chegada a hora de “melhorar o produto”. Em vez de insistir no erro e tentar ocultá-lo sob belas imagens e narrativas, mais inteligente – e sustentável – é rever atitudes e procedimentos, aproximar-se dos públicos estratégicos e, com eles, construir um novo modelo de relacionamento pautado pela franqueza e pela transparência. Só assim as marcas conseguirão reverter seu carma e transformar as consequências de posturas e decisões equivocadas em um círculo virtuoso de confiança e credibilidade.
O valor da sinceridade – “Pouca sinceridade é perigoso e muita sinceridade é absolutamente fatal.” Oscar Wilde, que pagou com a prisão e trabalhos forçados o preço da verdade, vítima do preconceito e da hipocrisia de sua época, tinha conhecimento de causa quando expôs, com essas palavras simples, o dilema dos comunicadores diante do desafio de tornar públicas questões sensíveis e polêmicas envolvendo suas organizações.
É comum ouvir de administradores pouco afeitos aos modernos conceitos da comunicação afirmativas do tipo “se divulgarmos isso daremos um tiro no pé” ou “se a concorrência não informa, por que iríamos informar?” entre outras. Esquecem que, no mais das vezes, aquela informação “confidencial” ou “de vital importância estratégica” pode ser obtida nas juntas comerciais, em pesquisa a jornais, em balanços publicados e, sobretudo, nos mecanismos de busca na internet, entre outros meios. Todo bom repórter sabe disso. Se assim é, por que não fornecê-la por iniciativa própria, matando pela raiz a erva daninha da desconfiança e o risco de versões deturpadas?
Apesar disso, mesmo profissionais da comunicação já calejados pelo ofício questionam o valor da transparência. Dizem que se trata de mais um recurso retórico, que ninguém conta tudo e que o segredo continua, sim, a ser a alma do negócio. Contribuem assim para perpetuar uma mentalidade que, se fez sentido algum dia, hoje o perdeu por completo em virtude, antes de tudo das novas exigências da sociedade e dos recursos tecnológicos que lhe permitem monitorar mais de perto os movimentos do mundo corporativo.
Fundamento da boa governança, a transparência na informação ajuda a estabelecer uma relação de confiança entre a organização e seus públicos estratégicos. Ao mesmo tempo, mal administrada, pode atrapalhar mais do que ajudar. E agora? O ponto de equilíbrio, ao que tudo indica, está em parte no uso da linguagem, cuja função George Orwell descreve sem meias palavras ao denunciar o discurso vazio: “O grande inimigo da clareza de linguagem é a falta de sinceridade. Quando existe um hiato entre as verdadeiras intenções da pessoa e o que ela afirma desejar, ela como que por instinto se refugia em palavras longas e em lugares comuns, como uma lula esguichando tinta.”
Adotar uma atitude mais sincera e expressá-la por um discurso claro, que respeite a inteligência do interlocutor e considere devidamente aspectos legais, contratuais e de governança, não colide em absoluto com os interesses de uma organização. Ao contrário, valoriza-a e contribui para aproximá-la de seus públicos, além de aumentar as “reservas” de credibilidade tão necessárias nos momentos de crise.
Do caos e da ordem – Uma história pode ser entendida como um conjunto de narrativas, que, por sua vez, são constituídas por diversos enunciados relacionadas entre si. Um enunciado é uma grandeza dotada de sentido, o estado resultante da enunciação, a instância que permite a mediação entre a competência (o saber-fazer) e a performance (o fazer). Enunciação é o ato de dizer, o processo gerador do enunciado; enunciado é o dito, o produto da enunciação. O par enunciado-enunciação trabalha a manifestação da subjetividade num discurso. Há um “eu” do enunciado e um “eu” da enunciação, situados em um lugar e em um tempo determinado (ego, hic et nunc).
Ao tomar para si a responsabilidade de contar histórias – as suas histórias –, a empresa ou instituição assume os papéis de sujeito da enunciação e do enunciado, deixando pouco ou nenhum espaço para que seus públicos participem das narrativas, sejam eles empregados, membros de comunidades vizinhas, acionistas, clientes ou outras partes interessadas. Mesmo quando esses “públicos” são os protagonistas e, em depoimentos e testemunhais, falam sobre sua relação com a empresa ou instituição, esta última reafirma sua posição de controle sobre a enunciação, na medida em que produz o ambiente/cenário, edita as falas, insere novas mensagens e elege os meios de divulgação.
O que seria novo, autêntico e à prova de futuras "comissões da verdade" é a geração de narrativas multifacetadas, urdidas a muitas mãos e por múltiplos sujeitos, em que as partes envolvidas dão suas versões e expõem seus lados de uma história. Em vez da narração, a conversa; no lugar da comunicação feita para o outro, a construída com o outro, por meio e sob a forma do diálogo.
A etimologia da palavra diálogo (do grego diálogos e do latim dialogus) ajuda a explicar isso. Está associada à busca de entendimento através da palavra, do conhecimento. Implica troca de ideias, conceitos e opiniões. Para haver troca é preciso existir diferenças, ou melhor, é necessário que elas sejam percebidas, aceitas – e valorizadas. O que nem sempre é algo fácil, pois conviver com diferenças é abrir espaço para a tensão e a incerteza em uma relação.
Mas, por “incômoda” que possa ser, a incerteza sempre fez parte da vida humana. Ilya Prigogine, prêmio Nobel de Química, lembra que os conceitos fundamentais da física, como as trajetórias na mecânica clássica ou mesmo as funções de onda na mecânica quântica, descreviam um mundo idealizado em que, a partir de certas condições iniciais, tudo poderia ser previsto e controlado. Descobertas posteriores, relativas aos sistemas dinâmicos instáveis, mostram que essa é apenas uma parte da verdade, pois em outras situações, pequenas modificações nas condições iniciais podem ser amplificadas ao longo do tempo, como no caso dos sistemas caóticos. De forma simplificada, pode-se dizer que a consideração desses conceitos leva a uma nova forma de entender o mundo, menos assentada em certezas, e mais em possibilidades.
Assim, ao optar pelo discurso monolítico de “contação” de suas histórias, a organização vive a falsa ilusão de ordem – entendida como uma relação qualquer entre dois termos expressa por uma regra, cuja evolução acontece de forma encadeada, com repetição e constância. Para o sociólogo francês Edgar Morin, um dos pais do pensamento complexo, a própria ideia de desenvolvimento e progresso, tão cara ao mundo corporativo desde a revolução industrial, está assentada em uma premissa equivocada de equilíbrio e autossuficiência, na qual o desenvolvimento provoca o progresso, que alimenta o desenvolvimento. Logo, o desenvolvimento por si só trataria de resolver as diferenças, dando aos indivíduos conforto, bem-estar e a capacidade de gerarem mais progresso, que, dessa forma, cresceria ao infinito, sem restrições.
Por outro lado, ao abraçar o diálogo, a empresa abre também os braços para a incerteza e o desequilíbrio, típicos de processos caóticos. Na sua origem, caos (do latim chaos) está relacionado à confusão, mistura de elementos, inferno, escuridão e treva, entre outras acepções. O caos testa, a todo tempo, a rigidez e a estabilidade de um sistema qualquer, suportado pela ordem, e, por isso, não pode ser visto com algo estanque ou separado da ordem. O próprio surgimento da vida é originado pela passagem de um estado de maior desequilíbrio (de caos) para outro mais equilibrado (de ordem), a partir da formação de macromoléculas com estruturação crescente até o surgimento de moléculas como o DNA, que é a base de todas as formas de vida de que se tem conhecimento. Segundo Morin, os enunciados caóticos (ou desordenados), dessa forma, são fundamentais para a geração de enunciados ordenados, os quais contribuem para o (re)equilíbrio do sistema.
Desse modo, para promover o diálogo, a empresa ou instituição precisa integrar a seus processos de comunicação – a partir da construção da narrativa – um quê de liberdade e de caos, capaz de lhe conferir a condição de inventividade e adaptabilidade. Um caminho que implica menos controle e mais autonomia aos indivíduos e às relações com todos os demais públicos; menos paternalismo (com os públicos com menor capital simbólico) ou submissão (com os de maior); menos soluções prontas e mais projetos construídos em conjunto, de forma colaborativa e solidária.
Nesse paradigma, as relações são estabelecidas de igual para igual, e todos podem ser protagonistas em algum momento, de acordo com a situação e com os saberes acumulados em experiências anteriores. Como se trata de um sistema complexo, com múltiplos agentes, nós, fluxos e direções em total interdependência, expressa as noções de totalidade ao agrupar diferentes elementos que, mesmo isoladamente, são representativos do todo, e de solidariedade ao admitir que mudanças em uma das partes de qualquer segmento ou em suas relações provocam modificações no sistema como um todo.
A empresa, nesse caso, é um agente como outro qualquer, e seus produtos e serviços são elementos desse vasto sistema, que entram no fluxo à medida que são estabelecidas as relações e, por isso, também podem ser construídos em conjunto com seus diversos públicos em um processo fluido, transparente e cooperativo. Essa é a lógica de uma nova narrativa, capaz de ajudar a resgatar os laços de interdependência de múltiplos atores sociais – conexões que se perderam ao longo do tempo e se tornaram escassas na sociedade de consumo -, mas são mais vitais do que nunca para a saúde da sociedade e das empresas e nossa sobrevivência comum: a tal sustentabilidade.
Artigo publicado na revista Marketing Industrial, n. 60.
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Luiz Fernando Brandão é jornalista e tradutor literário, sócio-diretor da consultoria in futuro e membro do conselho deliberativo da Aberje - Associação Brasileira de Comunicação Empresarial.
Paulo Henrique Bittencourt é publicitário, mestre em design estratégico, sócio-diretor da Sarau Comunicação entre Empresas e executivo-professor da Escola de Marketing Industrial.
Os artigos aqui apresentados n�o necessariamente refletem a opini�o da Aberje
e seu conte�do � de exclusiva responsabilidade do autor. 4518
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