O silêncio amoroso - uma possibilidade nas organizações
O que se lerá a seguir são as notas de uma palestra no contexto dos “Diálogos MVL”. São encontros nos quais a comunidade MVL – os profissionais que nela trabalham, assim como seus clientes, parceiros e amigos em geral- dedicam-se a refletir sobre um tema de interesse comum.
A edição de 28 de agosto de 2010 dos Diálogos aconteceu sob o título “A possibilidade do silêncio nas organizações – a meditação nas tradições budista e cristã”. Foram duas palestras, um pouco de perguntas e tentativas de respostas, um pouco de silêncio e depois comida, bebida e boa conversa amiga.
A palestra que buscou olhar o tema do silêncio nas organizações a partir da tradição budista foi conduzida pelo terapeuta Arnaldo Bassoli. Ele é fundador e diretor da Escola Paulista de Diálogo e líder do núcleo de Experiências Dialógicas da MVL. Ele não fez notas de sua breve conferência, mas todos ficamos vivamente impressionados.
A segunda palestra foi conduzida por mim, Mauro Lopes. O que se lerá a seguir são as notas que usei para apresentar a tradição cristã de meditação e a reflexão sobre a possibilidade do silêncio no cotidiano do mundo do trabalho.
* * *
Duas afirmações que podem surpreender muito e a muitos: o cristianismo é uma religião oriental e mística.
Acostumamo-nos à idéia de ver o cristianismo como um fato do Ocidente. Pensamos no cristianismo e pensamos em Roma. Mas não é o Vaticano a origem nem a fonte do cristianismo. É o oriente. Jesus é homem -para nós, cristãos, homem-Deus- nascido, criado e formado no judaísmo, na dinâmica cultural e religiosa de um pequenina porção de terra do Oriente que se lançou por toda a geografia e história da humanidade.
Uma religião oriental, portanto.
Quanto ao tema da mística: para quem tem mais de 30 anos e experimentou o catecismo convencional quando criança ou olha para a Igreja Católica a partir da vivência com missas que, para muitos, são totalmente ausentes de significado, a afirmação de que o cristianismo é uma religião fundada no mistério pode parecer nonsense –mas não é.
Um dos maiores teólogos do século XX, o alemão Karl Rhaner, dizia que “o cristão do futuro ou será místico ou não será cristão”i . Essa coisa água com açúcar e infantilizada que muitos conhecem ou da qual têm notícia vaga não é cristianismo.
O que quer dizer uma religião mística? A palavra mística é um adjetivo do substantivo “mistério”.
E mistério não quer dizer charada ou enigma, algo cujo objetivo é ser decifrado. Mistério é a profundidade existente em cada pessoa e em todo o universo e cuja totalidade, individual ou universal, jamais será conhecida por completo. Assim é no casamento. Podemos ficar anos e anos casados com alguém, mas sempre haverá uma zona de desconhecimento, algo que apenas tateamos, não dominamos.
É um dos belos paradoxos de nossa existência. Mistério é algo a ser conhecido. Mas ao mesmo tempo, é algo que continuará sempre mistério no conhecimento do ser humano.
A vida mística para o cristão é a vida no mistério de Deus. O que fazemos nesta vida? Fazemos a experiência de nosso ser como habitação de Deus e, ao nos permitirmos conviver com esta verdade, a habitação de Deus, passamos a vida a escutar, a buscar conhecer e nos aprofundarmos mais e mais no desconhecido, no inominável, no absoluto. São Paulo refere-se, em sua primeira carta aos Coríntios à “sabedoria de Deus, misteriosa e oculta” (1Cor, 2,7). É um caminho belo e mobilizador, permeado por alegria e angústia, momentos de calma e tempestade, tempos de deserto e solitude.
Não é coisa reservada a homens superiores ou especiais. É convite para cada um de nós.
Onde há uma particularidade, algo que torna esta mística especificamente cristã? No evento Jesus Cristo. Para nós, cristãos, ele é Deus feito homem, a nos tomar pela mão e nos conduzir pelo caminho do encontro com seu Pai, nosso Pai.
***
Qual o caminho para este encontro, para a “vida em mistério”?
A pedra angular, o motor, o alimento durante o caminho é a oração, individual e comunitária.
É por meio da oração que nos introduzimos no mistério e nele mergulhamos. Há outros alimentos fundamentais: estudo, trabalho, liturgia, vida em simplicidade e humildade.
E aqui iniciamos propriamente a conversa sobre o tema de hoje.
Há várias passagens nos Evangelhos sobre oração.
Muitas vezes Jesus se retirava para um monte ou um lugar afastado para rezar sozinho. Ao voltar de um destes momentos, os discípulos lhes pediram uma oração, e ele ensinou a eles o Pai Nosso.
O momento mais forte de oração de Jesus em Mateus, Marcos e Lucas é logo depois de ele ser batizado por João Batista. Durante seu batismo, Jesus ouve a voz do seu Pai, que diz, ”Este é o meu filho amado, de quem eu me agrado” (Mt, 3, 17; Mc, 1, 11; Lc, 3, 22). É um momento crucial: Jesus recebe sua missão. E o que ele faz, antes de dar cumprimento a ela? Retira-se para rezar, sozinho, por 40 dias, no deserto. Em solitude, por 40 dias, em silêncio, Jesus reflete sobre o caminho que viria a seguir. Neste tempo, supera as tentações do poder, da riqueza, do sucesso. Apronta seu coração, afirma sua decisão e parte para seu ministério, sua missão.
No Evangelho de Mateus, há uma orientação precisa de Jesus quanto à oração. É um pequeno tratado sobre a oração silenciosa, a meditação: “Tu, porém, quando orardes, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está lá no segredo; e teu pai, que vê no segredo, te recompensará” (Mt, 6,6). Qual segredo, ou melhor, onde é o segredo? O coração de cada um de nós. Ora a teu Pai que está no segredo, que está no seu coração. Jesus ainda orienta seus discípulos a não usarem de muitas palavras nem repetições, e esclarece que Deus conhece nossos pedidos mesmo antes que os formulemos.
A oração é, portanto, um momento de intimidade com Deus, que tudo sabe, é um “deixar-se estar”.
Esta orientação de Jesus teve ampla repercussão nos primeiros tempos. Muitos monges, que ficaram conhecidos como Padres do Deserto, se retiraram para o Egito, para o deserto, em busca da vida contemplativa, para encontrar seu “segredo”.
Eles são uma fonte cristalina e abundante para o silêncio. Evágrio Pontico, nascido na Capadócia (na atual Turquia), em 346, retirou-se para o deserto quando estava com cerca de 30 anos. Ouçamos o que ele dizia sobre oração:
“No tempo da oração, afasta de ti tudo o que te importuna (...)”
“Que tua língua não pronuncie nenhuma palavra quando fores rezar”ii
Ouçamos agora esta frase de Evágrio, ela lembra a de um taoista ou hinduísta, para ouvidos acostumados à onda orientalista “new age” dos últimos anos: “Não imagines possuir a Divindade em ti, quando oras, nem deixes tua inteligência aceitar a marca de uma forma qualquer; mantém-te como imaterial diante do Imaterial e compreenderás"iii
Este olhar para o caminho da oração teve um momento culminante com São Bento, que viveu no século VI, na primeira metade dos anos 500. Não foi o fundador do monaquismo, pois os mosteiros haviam surgido quase 300 anos antes no Egito, por iniciativa dos Padres do Deserto, e também na Palestina e na Ásia Menor. Sua ordem, a dos beneditinos, tronco do qual nasceram muitos ramos, tornou-se, no ocidente, quase um sinônimo de mosteiro. A Regra de São Bentoiv, que regula a vida nos mosteiros beneditinos há cerca de 1500 anos, tem como um de seus centros o silêncio. Em seu capítulo 20 (3), prevê que a oração não deve ser “com o muito falar, mas com a pureza do coração e a compunção das lágrimas”. No artigo a seguir, o 4°, a Regra fala em oração “pura”, inspirada em João Cassiano, de quem falarei breves palavras mais adiante, “pura” significando oração contemplativa e mística.
Saltemos seis séculos: encontramos, no século XII, com Bernardo de Claraval e seu amigo, Guilherme de Saint-Thierry, dois dos principais líderes da ordem cisterciense, um dos ramos surgidos a partir da inspiração de São Bento. A ordem, por sua vez, deu origem no século XVII aos trapistas, ou Ordem Cisterciense de Observância Estrita (OCSO – em latim, Ordo Cisterciensium Strictioris Observantiæ). Menciono esta particularidade, pois os trapistas têm papel importante em nossa história.
Ouçamos a sensibilidade de Guilherme: “(...) afaste-se de todas as idéias usuais sobre localização e lugar, e aferre-se a isto: você encontrou Deus dentro de si mesmo”v.
No Oriente, no século XIV, pontuam monges como Nicéforo, o Solitário e São Gregório de Sinaíta e, quase cem anos depois, São Nilo Sorski, na Rússia. São Nilo: “Para não cair em ilusão enquanto pratica a oração interior, não se permita conceitos, imagens ou visões”vi.
Ainda vale mencionar dois mestres da oração e do silêncio no Ocidente, os místicos Santa Teresa D’Ávila (1515-1582) e seu filho espiritual São João da Cruz (1542-1591), vítimas da intolerância e do preconceito em tempos muito difíceis na Igreja, a época terrível da Inquisição. É bom escutar a formulação poética de São João da Cruz vii: “Para se progredir, o que mais se necessita é saber calar diante de Deus... a linguagem que ele melhor ouve é a do silêncio de amor” ou ainda, esta bela pérola sobre a estrada mística até Deus: “O progresso da pessoa é maior quando ela caminha às escuras e sem saber”.
Durante séculos, a oração silenciosa, contemplativa, a meditação esteve praticamente restrita aos mosteiros. O cristianismo seguiu outros caminhos de oração, com palavras, muitas palavras, devoções, procissões, ladainhas, repetições. O silêncio esteve recolhido por séculos, ao longo do tempo da modernidade, da racionalidade, do Iluminismo, do antropocentrismo, os quase quatro séculos da perplexidade para a Igreja. Isto não quer dizer que não houvesse, às margens, na fragilidade, um belo rio, a correr todo o tempo, no Ocidente e no Oriente, mas aqui, hoje, não é o caso de percorrê-lo todo. Desde os primeiros tempos, como Isaac o Sírio, passando por São Basílio, Gregório de Nissa, Gregório de Nanzianzano, Hildegard de Bingen, São Francisco, Mestre Eckhart, Inácio de Loyola, até Carlos de Foucauld, no século XX.
Vamos dar outro salto, até o ambiente que desaguou, em 1962, no Concílio Vaticano II, o momento de reflexão e diálogo da Igreja com a modernidade. Neste clima, viveu um homem cuja importância para o cristianismo ainda está para ser revelada em sua inteireza, Thomas Merton. Da virada dos anos 40 para os 50 e até 1968, quando morreu num acidente prosaico -um fio desencapado num quarto de hotel em Bancoc- ele começou a re-apresentar, com seus livros, o silêncio para os cristãos. Merton foi um monge trapista, dos trapistas que mencionei há pouco, francês de nascimento, radicado no mosteiro de Gethsemani, no Kentucky, Estados Unidos. Ele escreveu mais de 70 livros, em prosa e verso e milhares de cartas. Foi um bom amigo de um jovem tibetano, o Dalai Lama.
Uma definição de meditação, por Merton, formulada em 1949:
“A meditação está baseada numa dupla disciplina e tem dupla função.
Primariamente, tem por finalidade dar-nos suficiente domínio sobre nossa mente, nossa memória e nossa vontade, de maneira a podermos recolher-nos e afastar-nos das coisas exteriores, dos negócios, das atividades, dos pensamentos e das preocupações da existência temporal. Em segundo lugar –e essa é a verdadeira finalidade da meditação- ela nos ensina a tomar consciência da presença de Deus e, sobretudo, tem por alvo colocar-nos num estado quase contínuo de atenção amorosa a Deus e de dependência para com ele”viii.
A semente de Merton germinou. Nos anos 70, dois movimentos (o que é quase um paradoxo, falar em “movimento” referindo-se à meditação) desenvolveram-se paralelamente, sem que um soubesse que o outro vicejava.
O primeiro, mais uma vez, inspirado pelos trapistas. Em 1974, o monge William Meninger, que vive no mosteiro de São José, em Spencer (Estados Unidos), encontrou um livro empoeirado na biblioteca do mosteiro: “A Nuvem do Não-Saber”. O livro foi escrito por alguém cujo nome nos é desconhecido, provavelmente um monge, no século XIV, na Inglaterra. Era um guia, um manual para a oração contemplativa, um tesouro escondido. Um trechinho: “Portanto, você tem que destruir todo conhecimento e sentimento de todo o tipo de criatura, porém muito especialmente de você mesmo”ix.
Ao lado de dois outros monges trapistas, Basil Pennington, que morreu em 2005, vitimado por um acidente de carro, e Thomas Keating, Menninger passou a divulgar a “Oração Centrante” -o nome foi inspirado num texto de Thomas Merton.
Enquanto estes três trapistas faziam sua jornada nos EUA, um monge beneditino, John Main, seguia por outros cantos do mundo. O inglês John Main estava em meados dos anos 50 na Malásia, em Kuala Lampur, visitando um orfanato, quando conheceu um swami (monge indiano) que o impressionou vivamente.
Conheceu a meditação, começou a praticá-la, sob um olhar cético de muitos no ambiente monástico inglês. Anos depois, quando era reitor do Colégio Beneditino nos Estados Unidos, em Washington, ele descobriu João Cassiano.
João Cassiano vale muito mais que um minutinho. Em 2009 participei de um retiro de três dias sobre ele, pregado por dom Bernardo Bonowitz, abade do Mosteiro trapista de Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente (interior do Paraná). Mas Cassiano vale ainda muito mais que isso. Ele viveu entre meados dos anos 300 e início dos 400. Nascido onde hoje é a Romênia, foi monge na Palestina, no Egito, em Constantinopla e, finalmente, em Roma. Sua 24 “Conferências” e suas “Instituições” são obras essenciais à mística cristã. É João Cassiano quem fez a ponte entre o monaquismo original, do Oriente, e o Ocidental. Pouco mais de cem anos depois, seria largamente citado na Regra de São Bento, como vimos minutos atrás.
Suas conferências IX e Xx sobre a oração, motor do retiro a que me referi, são as mais conhecidas. Ouçamos juntos uma música que, a esta altura, creio que já nos começa a ser familiar: “Não se vincula essa oração à consideração de qualquer imagem, nem se expressa através de palavras ou de sons”.
E, desde o século IV, Cassiano já nos apresentava o encontro da contemplação com a ação, com a experiência vivida. Ele cutucava uma questão que atravessaria os tempos, a possibilidade de uma solução positiva para o paradoxo entre a vida de oração/meditação e a vida ativa. Ele indicava que o terreno da ação é iluminado pela luz, pela vela, pela lanterna da oração.
Ao falar das Escrituras, ele esclarecia: “(...) o significado das palavras não nos é transmitido através de explicações, mas mediante nossa própria vivência”. Dito de outra forma: posso falar vinte minutos, meia hora, dez horas, mas se a minha fala não encontrar conexão, não fizer liga com a experiência de quem escuta, não fará sentido, não criará sentido, ou melhor, sentidos novos.
O diálogo da oração com a experiência é ainda mais radical que isso. Para os cristãos, quando rezamos a partir da Bíblia ou dos salmos em particular, não estamos “lendo” um texto histórico. Estamos recebendo uma carta que foi especialmente escrita para nós. Leio uma carta que fala da minha vida. O que diz Cassiano sobre isso é belo: “O monge considera, então, que eles [os salmos] foram escritos especialmente para ele e que, rezando-os, exprime não apenas o que foi realizado historicamente em relação ao profeta, mas também tudo quanto se verifica cotidianamente em sua própria experiência”.
Outra formulação de Cassiano amarra a oração à vida em oração. Ouçamos: “De fato, aquilo que nossa alma engendrar antes da hora da oração, nos será infalivelmente representado, pela memória, enquanto oramos. Por conseguinte, tais como desejamos ser durante a oração, urge que o sejamos também antes da oração”.
Foi lendo e meditando estas e outras palavras que dom Jonh Main, iniciou em 1974, em Washington, os primeiros grupos de oração daquela que viria a ser uma brisa hoje mundial, a Comunidade da Meditação Cristã. Ele morreu em 1982, e a Meditação Cristã recebeu o presente de seu herdeiro espiritual, dom Laurence Freeman, também um beneditino inglês, que anima grupos de meditantes em todo o mundo –ele vem anualmente ao Brasil, como virá agora em novembro, para pregar a boa nova da oração silenciosa.
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Penso que este breve, ligeiro panorama, desde os ensinamentos originais de Jesus até hoje atesta a existência de uma tradição cristã de oração silenciosa, de meditação.
E onde esta tradição se encontra conosco no mundo, no cotidiano do trabalho?
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Sentar, ficar quieto, esvaziar-me.
Não é fácil. Tem aparência simples, é simples, mas desata processos interiores muito complexos.
Aquietar minha voz interior. Em quase dez anos de oração silenciosa, nunca consegui fazer isso por 20 minutos, nem por 10. Um vazio prolongado de cinco minutos, que desafio!
Há sempre um texto a escrever, uma resposta não dada, uma reunião, o projeto, uma idéia, o almoço, o jantar...
Por vezes, todos os 20 minutos diários (ou quarenta, quando consigo meditar também à noite) são esta busca aparentemente infrutífera do silêncio.
O que fazer? O que fazer quando me faço consciente de meus pensamentos?
Pode soar estranho, mas é isso mesmo: pensamos e não nos damos conta que estamos pensando. Então, quando me flagro pensando, logo penso: “Para com isso, Mauro. Volta!”. E tento voltar ao caminho do silêncio.
Como se chama isso? Disciplina amorosa. Esta busca cotidiana pelo meu centro, pelo silêncio, por encontrar-me completamente com o Outro, com Deus.
Às vezes, este encontro acontece por alguns segundos, ou fração de segundos, e me faço completo, pleno, integrado.
Ouço a voz de Deus que me diz, como disse mais de uma vez a seu filho nos Evangelhos: “Mauro, você é meu filho amado. Amo você como não amo mais ninguém no mundo, e eu lhe amparo e lhe consolo”.
Na verdade, Ele está dizendo isso a mim agora, neste exato momento. E a cada um de nós, a cada um no mundo. Sim, pois este amor de Deus a cada pessoa é único, mas não é exclusivo.
Ele ama todos os bilhões de seres humanos, a cada um de um jeito particular.
Se ficarmos quietinhos, em silêncio, ouviremos.
E a vida vale a pena.
E toda a jornada vale a pena por isto, por este momento. Na verdade, a jornada vale a pena por ela mesma. A busca em si mesma é antecipação deste momento.
É assim: sento numa cadeira, encosto reto, ou num banquinho de oração, na capela há alguns deles, para quem não conhece. É para me sentir confortável, mas não excessivamente, senão durmo. Pouso as mãos sobre minhas pernas. Coluna ereta, olhos fechados, aos poucos vou ritmando minha respiração, mais lentamente. Em silêncio, começo a repetir mentalmente meu mantra.
Cada um escolhe o seu. Uma palavra, uma frase curta. Na Meditação Cristã, sugere-se o uso da palavra MARANATHA. É uma breve oração em aramaico, quer dizer “Vem, Senhor”, é com ela que Paulo encerra a primeira carta aos Coríntios. Como Maranatha não quer dizer nada em português, é uma boa escolha. Pois não pretendo nenhum sentimento piedoso, amoroso. Nada.
Apenas silenciar a mente. Levá-la ao meu coração, onde eu habito, despido de meu ego, onde mora o Senhor. Mas o silêncio não como é uma viagem de férias programada para este encontro, como se eu pudesse comprar passagem, escolher a janelinha ou o corredor.
É apenas para encontrar silêncio, um silêncio profundo. Assim fico, 20 minutos. Um período de manhã, bem cedinho, antes da agitação em volta começar, e à noite.
Silêncio. Depois de 20 minutos, pronto. É bastante tempo. As distrações aparecem toda hora. E me socorro do meu mantra. Bem devagar, em silêncio: MA-RA-NA-THA, MA-RA-NA-THA.
Só isso.
***
Como é possível silêncio no mundo do trabalho? Nas organizações? Ou melhor: é possível o silêncio?
É claro que não se trata aqui do silêncio do temor, da ordem, do medo e sim do silêncio de paz, silêncio criador de paz.
É um enorme desafio. As empresas, as organizações, são invenções destes 400 anos, da modernidade.
É o terreno do fazer, do atingir, do mobilizar, da meta, do alvo, da disputa, do foco na coisa, do foco na dimensão das coisas, todas disponíveis para que o objetivo seja atingido.
Para isso, as empresas organizam-se de maneira piramidal, de cima para baixo, a partir do CEO. Elas são o espaço do ego-centro. Todos olham para ele, tudo gravita em torno dele. Nas áreas, equipes, times, há simulacros de CEOs, “CEOzinhos”, reproduzindo indefinidamente a lógica moderna.
A humanidade experimentou a democracia, a modernidade trouxe o homem para o centro do universo, mas ao longo dos séculos, nas organizações, não foi o homem como gênero a ocupar o centro, mas alguns homens muito concretos, de carne e osso, RG e CPF. No terreno próprio das empresas estes homens são os controladores, os CEOs, os chefes.
Um terreno da competição, de projeção do ego em busca da conquista.
Neste campo de batalha, como é que eu fico em silêncio, correndo o risco de me defrontar comigo mesmo? Melhor permanecer falando, todo o tempo, pois então não preciso olhar para mim, e sim para a projeção que arquiteto de mim. Este é o convite, o xarope que as organizações tentam nos empurrar garganta abaixo.
Pois, se olho para mim, terei que olhar para o belo e o feio. Terei que encarar o sucesso, mas igualmente o fracasso, minha força e minha fraqueza. E, convenhamos, a oferta da empresa moderna não admite que pisquemos os olhos. Fracasso? Feiúra? Fraqueza? Estou liquidado se abrir a guarda num mundo medido em números e preços.
Então, fujo de mim mesmo. Não é possível o silêncio, pois o risco é me ver como sou, pânico!
O nirvana não é a empresa de capital aberto? E qual a lógica do mercado? Que CEO agüenta três trimestres no vermelho? Não há caminho pós-moderno que agüente esta avalanche moderna do resultado do trimestre.
Para que as empresas atinjam o nirvana, ainda agora, em pleno século XXI, tornamo-nos máquinas. Trabalhamos dez, doze horas, quinze, aos sábados, domingos, pressão, pressão.
Às vezes me espantam estes enormes salões de pessoas vinculadas a funções administrativas ou de marketing ou de gestão de pessoas, ou outras, e o salão num aparente silêncio.
A tensão é sensível e cada tela de computador grita, chega a ser ensurdecedor. Na MVL também é assim, todos gostamos de estar lá, mas a MVL não é o paraíso, estamos no mundo, e não fora dele.
Demandas, cobranças, prazos, metas, metas, metas.
Barulho, barulho, barulho.
Nestes lugares, não há espaço para o silêncio da paz.
A lógica convencional e moderna das organizações nos mede por nosso desempenho. E, ao longo dos anos, o risco é este: não somos quem somos, mas a medida da régua do desempenho.
Há opção, há caminho? Penso que sim. Sempre há. E haverá cada vez mais.
A partir do fim dos anos 80, ao longo dos 90 e agora no início do século, tem havido novos olhares. Aqui e ali há brechas, há um novo arranjo surgindo. Mas é um caminho longo, árduo.
Cada dia há mais pessoas fartas da lógica da modernidade, apesar de ela ainda ser a dominante. As organizações progressivamente deixam de ser o centro do mundo num mundo mais e mais multicêntrico.
Há outra lógica em curso. A revolução da tecnologia da informação, as redes sociais, o renascer da espiritualidade, a consciência da ameaça a toda a vida do planeta, engendrada pela egotrip do homem potente. Novos caminhos se abrem.
Podemos escolher. Ao lado de toda a engenharia mental da produtividade, que encara as pessoas como custo, as empresas podem tornar-se, espaço de comunidade, de comunhão das pessoas.
Um novo mundo pode surgir, uma plantinha tenra, nas frestas, nos paradoxos do mundão.
É possível acolher amorosamente o paradoxo entre fazer e ser, objeto e sujeito.
E não nos deixarmos mais comandar pelas planilhas, mas as entendermos como meros artifícios para aumento da produtividade e relativizarmos sua importância. Pode parecer absurdo, mas podemos comandar as planilhas e não sermos mais comandados por elas.
As organizações podem ser espaço de encontros, de amizade. O fato é que não passamos a maior parte do tempo de nossas vidas adultas com nossas famílias, com nossos amigos da época da escola, ou em férias. Passaremos entre nós, pessoas que trabalham juntas. Não precisamos navegar por este enorme rio com a faca entre os dentes, competindo com todos, até com nós mesmos, com a sombra de nossa verdade a nos ameaçar.
Há um belo livro de Margareth Wheatley, uma pensadora desse novo momento para as empresas, no qual ela falava, já nos anos noventa, dessa possibilidade. Escreveu ela: “Estamos voltando a nos concentrar em nosso profundo anseio de comunhão, de significado, de dignidade, de propósito e de amor na vida organizacional”xi.
Podemos estender a mão.
***
O silêncio? O silêncio é a pequena chama de um outro jeito de pensar, ser e fazer no mundo.
O silêncio, a meditação oferecem às empresas em xeque a possibilidade da dúvida a real possibilidade do novo. Silenciar, meditar é estarmos prontos para a dúvida, prontos para abrir mão das certezas e seguir adiante, mesmo assim. Seguirmos amigos.
No silêncio, não precisamos de números, e sim de presença.
Isto quer dizer uma nova geração de líderes. Pessoas de silêncio e diálogo, de novas palavras.
Penso que as palavras podem ser criadoras. Dizemos “eu te amo”, e nossa vida muda. Digo “meu filho, faça seu caminho, estou ao seu lado” e uma estrada se abre.
Mas no mundo do palavrório, das palavras saltando aos borbotões pela TV, pelo rádio, pela tela o computador, pelas telas escancaradas até nos elevadores, pelo twitter, vazando por todos os lados, a palavra tem cada vez menos força. Palavra, palavra, palavra, palavra.
Os chefes falam nas empresas e ninguém escuta. Ou escuta-se apenas o necessário para cumprir a tarefa. Palavras despidas de sentido e inspiração.
A força da palavra surge do silêncio. Um dos líderes espirituais mais significativos do século XX, o padre holandês Henri Nouwen, escreveu com profundidade e entonação poética: “O silêncio é a morada da palavra e a ela dá a força e a fecundidade. Podemos até dizer que as palavras têm o objetivo de revelar o mistério do silêncio do qual elas se originam”xii.
Eis um bom convite a nos fazermos no nosso cotidiano, no nosso cotidiano no mundo do trabalho. Aquietar a mente, silenciar, reencontrarmo-nos com a palavra, encontrarmo-nos uns com os outros.
Quinze minutos por dia, não mais que isso, um bom convite. No caso da MVL, podemos sair até o Parque Trianon, nosso vizinho. Há a Igreja São Luis a dez minutos de caminhada. Não é necessário ser católico. É um local grande, basta escolher um banco afastado, sentar, fechar os olhos, deixar que o barulho da Paulista fique para trás.
Há boas iniciativas acontecendo, umas florzinhas plantadas aqui e ali. A Natura tem agora uma sala para o silêncio e a meditação, no quarto andar de sua sede, em Cajamar. É um começo.
Na MVL, temos nosso programa de folga. Todos na MVL têm direito a um dia por mês sem trabalho. Penso que é um espaço de silêncio, de respirar lentamente, de reencontro. Sair um dia por mês da rotina do trabalho. Abrir uma janela. Depois voltar. O que eu digo é que é sempre possível que não voltemos iguais. O que a gente vê, ouve ou silencia neste dia de folga pode ser uma nova riqueza para toda nossa pequena empresa-comunidade. Espaço para a boa palavra, a boa idéia, a criatividade libertadora.
Uma reflexão se impõe aqui, antes que surja algum entendimento distorcido: o cotidiano das empresas não é algo que todo o tempo nos aliena de nossa humanidade. No trabalho, qualquer que seja ele, encontramos nossos limites, nos aventuramos a rompê-los ou nos conformamos a eles. No trabalho encaro minha realidade, todos os dias.
No trabalho também posso (e posso mesmo) tocar o outro, fazer-me amigo, seguir junto vida afora.
***
Precisamos de silêncio? Sim, para nos conectarmos a Deus e a nós mesmos. Isso não quer dizer que nos afastemos do mundo ou que precisemos sucumbir ao paradoxo oração ou ação, vida contemplativa ou vida ativa. Estes são paradoxos, como tudo em nossa vida. Há uma única vida. Nela há ação e oração, atividade e contemplação. Mais ainda: sem ignorar o paradoxo e a contradição, podemos buscar uma vida contemplativa na ação.
Como ensinou Cassiano, posso unir minha ação à minha oração. Isto não quer dizer que medito para me sentir melhor que os outros. Medito para ser quem eu sou, e me aceitar assim e, mais que saber, sentir que sou amado por Deus exatamente como sou. No cotidiano do trabalho na MVL e com nossos clientes, parceiros, amigos, o silêncio me ajuda a escapar às armadilhas de meu ego e me apresentar assim, Mauro, imerso em minhas qualidades e defeitos, limitações e generosidade, contradições e paradoxos.
Uma última palavra.
Depois de tantas palavras sobre o silêncio, preciso dizer a vocês que para nós cristãos, não é o silêncio nosso objetivo. Silêncio é apenas um caminho, um caminho privilegiado para o verdadeiro objetivo, o amor. O silêncio é a estrada. São João diz em sua primeira carta: “Deus é amor” (1Jo 4, 16b). Sim, nada mais, nada menos, amor. Amor dedicado a mim, a você, a você, a toda a humanidade. É para encontrar este Amor, para encontrar Deus, que nos aquietamos.
E, quando abrimos os olhos, depois de 20 minutos de silêncio, podemos nos surpreender e nos encantar, vislumbrando Deus no rosto de cada pessoa, todas as pessoas.
Obrigado.
i - RAHNER, Karl. Curso Fundamental da fé. Paulinas, São Paulo, 1989. p. 157
ii - CLÉMENT, Olivier, Os místicos cristãos dos primeiros séculos, Mosteiro da Santa Cruz, Edições Subiaco, Juiz de Foras, 2003, p.300
iii - RIBEIRO E SILVA, Gilberto, Coração Místico, disponível em http://coracaomistico.blogspot.com/2007/12/evgrio-pntico.html. Acesso em 20 de agosto de 2010
iv - A Regra de São Bento, tradução de dom Basílio Penido, OSB, Mosteiro da Santa Cruz, Juiz de Fora, 2004, p. 72
v - SAINT-THERRY, Guilherme de, Da Oração, in Pennington, Basil, Oração Centrante, Editora Palas Athena, São Paulo, 2002, p. 47
vi - PENNINGTON, Basil, ________________, p. 53
vii - CRUZ, João da, O amor não cansa nem se cansa, Paulus, São Paulo, 2005, p. 50-51
viii - MERTON, Thomas, Novas sementes de contemplação, Fissus, Rio de Janeiro, 2001, p. 214
ix - Autor anônimo, A nuvem do não-saber, Paulus, São Paulo, 2002, p. 112
x - CASSIANO, João, Conferências VIII a XV – volume II, Edições Subiaco, Juiz de Fora, 2006, p. 98, 46 e 97
xi - WHEATLEY, Margaret, Liderança e a nova ciência –descobrindo ordem num mundo caótico, Cultrix, São Paulo, 2006, p. 35
xii - NOUWEN, Henri, A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo, Edições Loyola, São Paulo, 2001, p. 45
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