Há uma enxurrada de interpretações sobre as jornadas que tomaram as ruas do país nos últimos tempos. Arrisco a minha, a partir da provocação de uma amiga, que revelo no final do texto.
As manifestações brasileiras não apenas surpreenderam nossas elites políticas, econômicas, jornalísticas: colocaram-nas em estado de choque. Inicialmente, houve uma rejeição generalizada – como sempre acontece quando o povão toma as ruas; depois, com a afluência cada vez maior de gente e as pesquisas mostrando o apoio da maioria da população ao movimento, as elites tradicionais trataram de expressar afinidade com os manifestantes.
A abordagem dessas elites às jornadas aconteceu a partir de dois eixos, depois de uma manifestação formal de simpatia: 1) exigência de uma plataforma sistemática de reivindicações e 2) supervalorização e condenação radical dos atos de violência (não os da polícia, mas dos “vândalos”).
Não escreverei sobre o segundo tema, pois me parece tópico nos protestos – passado o frenesi jornalístico com as imagens de impacto, tais episódios não devem ser considerados relevantes quando for relatada a história do país em 2013. Relevante mesmo na dimensão sombria da violência é que as agressões policiais foram a causa da inundação nas ruas.
A exigência de um conjunto de reivindicações deu o tom na cobertura dos jornais e na posição dos políticos. Como é possível ir tanta gente às ruas por apenas 20 centavos? Como é possível negociar se não há uma lista de exigências nem líderes formais?
As jornadas brasileiras – e as paulistanas em particular, que presenciei- apresentaram uma sociedade diversa, divertida (e agressiva), dividida; na mesma geografia, dois tempos distintos.
As elites brasileiras (eu incluído) formaram-se à luz das dinâmicas modernas: orientam-se pelos nortes de riqueza, sucesso, prestígio, poder, planos, planilhas, timesheet, time is money.
Não conseguem entender o novo, pois ele afronta o código mental, de valores e emocional do estabelecido; e, depois de vários ensaios, no plano do real físico e do real virtual, irrompeu o novo com vigor inesperado. Choque geral.
A lógica que está enterrando a modernidade, num processo complexo e recheado de interações e contradições, veio à luz. Pós-modernidade, já se chamou; modernidade líquida; pós-pós, o que seja.
Um novo que não é o novo, pois continuamos carregando o mesmo DNA, a mesma velha humanidade; mas uma grande novidade que se conecta a outras grandes novidades que chacoalharam a história.
O que é o novo do novo? Redes sem precedentes.
O homem sempre se organizou em redes, em sistemas ou à margem deles. Agora, porém, estamos todos potencialmente inseridos nelas, nas redes sociais. Redes, ou seja, relações, em escala impensável. Novas relações; gente que jamais se poria em conexão pelos limites da geografia, da mobilidade urbana, das fronteiras mentais, travando contato, conhecendo-se.
Qual a característica das redes? Há redes marcadas pela objetividade: reunimo-nos em rede para fazer algo. As empresas são o exemplo mais concreto das redes na modernidade. Pessoas reunidas para produzir produtos e serviços e criar valor, apropriado em diferentes graus dependendo de minha posição na rede; uma rede de tipo verticalizado, hierarquizado, que só existe para cumprir seu objetivo.
Mas há redes que não produzem nada aos olhos da objetividade moderna: são “produtoras” de relações. E, portanto, de sentidos. Pessoas reunidas em torno da busca de sentido ou sentidos, de encontrarem-se e encontrar-se, de tocar-se em sua subjetividade. Estas são as redes que foram às ruas.
Pessoas que, nas ruas, deram as favas às metas, planos, sucesso... Simplesmente encontraram-se para partilhar desconforto e alegria, fazerem-se amigos e rirem uns dos outros e da vida, manifestar algo que é absolutamente estranho ao mundo moderno: solidariedade gratuita.
É claro que somos gente que, no cotidiano, trabalhamos, estamos aferroados ainda às metas (e ai de nós se não as cumprirmos!); vivemos sob a égide do mundo da produção e do serviço e, acredito, procuramos fazer bem feito. Mas há frestas, brechas para o encontro, a palavra, os sentidos, a relação, todos os dias – as jornadas na rua foram uma explosão daquilo que a vida nos propicia cotidianamente. Nada a reivindicar, exceto comprazer-se com a vida.
Cada um do seu jeito, com seu cartaz ou sem cartaz, sozinho, em casal, trio ou turma, tribos e famílias, roupas e adereços. Em alegria. Sim, é preciso reconhecer: não apenas em alegria, posto que há contradições e paradoxos permeando o novo, permeando tudo –houve explosões de violência mesmo entre os que se manifestavam.
O preço das passagens foi reduzido. Ótimo. O tema da mobilidade urbana foi a “cola” que juntou o vitral multicor. Mas a gota d’água não é o copo cheio. E o copo cheio é o mundo novo que pede passagem.
Vitória ou derrota nas jornadas? Quem teve ou tem o privilégio de conhecer Valéria, mãe de dois de meus filhos, coleciona suas frases marcantes. Uma delas, pronunciada ao cabo de alguns momentos de decisão, ensina: “Tenho orgulho de todas as minhas derrotas”. Pois não é disso que se trata quando se vai às ruas? Romper com a lógica maluca da vitória – ter que vencer, ser o primeiro, derrotar os outros; instalar outra lógica, que nos faz orgulhosos de tudo o que vier, pois vem do coração, de uma ação amorosa em busca de relações plenas de significado e acolhimento e espaço.
Uma amiga muito querida, Adriana, escreveu-me perguntando que cartaz eu levaria para uma manifestação. Pensei uns minutos: quais os sentidos das manifestações para nós todos que lá estivemos? Foi esta reflexão que me levou a escrever este texto breve. Meu cartaz seria: “Não importa no que vai dar: importa estar”.
Qual a promessa contida nas manifestações? Qual o prêmio? Há uma bela passagem no primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, que fala sobre o prêmio, o prêmio da vida vivida em abundância. Abraão derramava sua angústia, interpelando Deus sobre o fato de estar muito velho e sem filhos – para os judeus, não deixar descendentes era e é algo terrível. Então Deus conduziu Abraão para fora da tenda e disse: “Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz. Assim será tua descendência”.
É essa a promessa, o prêmio para quem foi às manifestações. Deixaram suas tendas, seu ensimesmamento, seu medo das ruas, seu medo da noite. E ganharam as estrelas do céu, e sua descendência. Eu estive nas jornadas dos anos 70, que contribuíram para o fim da ditadura; meus filhos (e eu) estivemos nas ruas agora; quem sabe meu neto não estará nas jornadas de daqui a 20 anos? Sim, pois não nos iludamos: o mundo não será o paraíso – sempre haverá ruas a ocupar e estrelas a ver. Ganhei minha descendência, meus filhos estão ganhando a deles. E nossa biografia tem novos vínculos e histórias. Pra isso não precisamos de plataforma ou pauta de reivindicações – só precisamos sair da tenda e ganhar as estrelas.