Aline e Sabrina, ausência e presença
Não conheço Aline pessoalmente. Mas, ao longo de meses, construímos uma relação epistolar, que hoje se qualifica “virtual”, marcada por respeito e delicadeza bem reais. Aline é quem, até dias atrás (para ser exato, sexta-feira da semana passada, 26 de março de 2010) cuidava deste espaço onde eu e muita gente escreve, a coluna da Aberje. Imagino que ela cuidava de muitas outras coisas na Associação, mas não sei.
Nosso primeiro contato foi em meados de 2009, quando ela enviou-me e-mail convidando-me para ser colunista da Aberje. E-mail protocolar, como é praxe. Foi nosso começo. Uma relação sem razão para prosperar. Ela, a me lembrar de meu artigo de cada mês. Eu, imerso em meus afazeres, ocupações e preocupações, buscando livrar-me das mensagens de Aline com um OK. É uma situação que não deve causar estranhamento aos que lêem esta coluna. Nossa vida profissional é povoada de relações OK. Nunca passam disso.
Conosco não foi assim. Aos poucos, como às vezes acontece em frestas abertas em relações inicialmente frias e formais, uma pequena luz foi acontecendo, aqui e ali. Mais tempo dedicado a uma resposta, uma pergunta sincera sobre como estava Aline (um curto “tudo bem?”, mas com intenção de ouvir a resposta para além do “Tudo” ou então o OK).
Ao longo dos meses, trocamos significado. Nada demais, quase coisas à-toa, pequenas trocas, gentilezas. Você pode ler o artigo antes da publicação? Você conseguirá mandar o artigo no prazo? Posso mandar um link para uma música? Vai funcionar? Este mês você mandará seu artigo? Não, não conseguirei.
O último artigo veiculado aqui antes deste é de dezembro de 2009, faz tempo. Sexta da semana passada, Aline bateu à minha caixa postal, de mansinho, “e então, e seu artigo?”, “ficamos um tempinho sem publicar (...)”. E eu, “Aline querida, caí de um caminhão de mudança há dois meses (...)”, disse que estava escrevendo um novo artigo (não é este, será o do próximo mês), agradeci: “Obrigado por se lembrar de mim”. Terminei perguntando, “Você está bem?”.
E veio luz: “(...) obrigada por perguntar de mim. Ia mandar uma mensagem automática, mas prefiro dizer ‘pessoalmente’ que hoje é meu último dia na Aberje (...). Saio daqui com o coração na mão, pois foram muitos relacionamentos que com certeza me fizeram muito grata por todo o tempo que passei aqui”.
Aline deve ser bem jovem (não sei sua idade). Mas já entendeu o que importa. Vamos todos quase-engolidos por uma enorme onda -a imagem de uma grande onda se aproximando me assoma às vezes, em momentos de grande atribulação, obrigações, prazos, demandas, urgências... E o sentido original da vida nos escapa.
Estamos em meio à ambiência paradoxal (o mundo do trabalho!) que nos convida à realização, ao encontro com nós mesmos, como diz Joseph Conrad: “Gosto do que existe no trabalho –a possibilidade de se encontrar a si mesmo. Sua própria realidade –a sua, e não a dos outros (...)”¹ . Entretanto (paradoxo!), na maior parte do tempo, a rotina do trabalho nos amassa em alienação e estorvo.
Graças a Deus não é mais desse jeito para mim, há alguns anos. Aline me mostra, em sua juventude e sensibilidade, que não precisa mesmo ser assim.
Um capuchinho morto em junho do ano passado, Prudente Nery, captou com rara beleza, a possibilidade que a vida nos oferece, a alternativa ao vai-e-vem alienante:
“É inegável: há, no mundo de nossas experiências, muitas palavras, pesadas como chumbo, que nos abatem e magoam; outras, afiadas como navalha, que nos rasgam a alma e outras tantas que apenas nos incomodam pelo seu vazio de sentido, apesar de toda turbulência verbal. Há coisas que nada nos dizem. Há paisagens áridas, encontros fúteis e relações que ligam nada a coisa alguma. Mas há também, neste mundo, alguns instantes, raros certamente, em que, descerrando quase o véu de seu inviolável mistério, nos visita o absoluto sentido de todas as coisas. O instante e o lugar onde isto se der ser-nos-ão para sempre preciosos, como um pedaço do céu, um reino de felicidades, por ter sido o lugar do encontro do que, apaixonadamente, tanto buscávamos E aí saberemos: o mundo não é apenas o irremediável aí de nosso ser, ele é também o lugar dos primeiros acenos e encontros de um eterno amor. Este mundo nunca deixará de ser finito, banal, profano e, em si mesmo, desimportante... tenda precária, imprópria e indigna para aquele que imaginamos nas alturas inalcançáveis ou nas profundezas impenetráveis, mas o único lugar em que ora é possível a Deus, ainda que humildemente retraído estar junto dos homens e aos homens estarem perto de Deus”².
Foi assim com Aline e comigo. Voltaremos a nos corresponder? Não sei. Mas ela está inscrita em um canto de meu coração, vida afora.
Também é assim com Sabrina. Ela é uma mulher pequenina, alegre, disposta, animada, cheia de energia. Uma luz em nossa pequena empresa-comunidade, a MVL. Sim, ela é plena de energia, mas não daquela energia com que muitas vezes nos defrontamos no dia-a-dia nas organizações, a energia do “tem que”. É outra a energia de Sabrina, é convite, empolgação, realização.
Ela está conosco há três anos. Desde 2007 co-lidera um projetos muito estimado por nós, o Canal Natura. Criação conjunta das equipes da Natura e da MVL, parece uma TV corporativa mas não é. Em várias telas de plasma espalhadas em espaços da empresa e na Intranet, acontece vida ao vivo. O universo das relações, da construção cotidiana, dos questionamentos e da celebração está registrado no Canal, um grande “ponto de escuta” da comunidade Natura -onde se faz um belo e original caminho de encontro entre o universo do trabalho e o sentido da vida.
Pois Sabrina está nos deixando, agora, na primeira semana de abril. Por sua competência e generosidade, foi convidada para ser coordenadora de uma área da Natura. A notícia do convite chegou-me na forma de uma consulta suave, amiga, parceira. “Pensamos em convidá-la, o que lhes parece?”. Foi um desses momentos de dor-alegria, um não-sei-o-quê a me apertar o peito. A perda do privilégio de conviver com Sabrina em nossa comunidade ao mesmo tempo, o universo de possibilidades, novos fazeres e realizações abertos a ela.
Houve uns dias de silêncio entre o convite e o dia que Sabrina trouxe sua decisão. A sede da MVL está num lugar privilegiado, um 13° andar à esquina da rua Ministro Rocha Azevedo com a alameda Santos, um escritório lançado sobre a avenida Paulista. Descemos, Sabrina e eu, saímos a caminhar no vizinho Parque Trianon, a última reserva remanescente de mata Atlântica encravada no centro de São Paulo, lugar de sombra e frescor em dias cada vez mais quentes (teremos agora suavidade outonal em São Paulo?, veremos).
Caminhamos em silêncio, rimos bastante, choramos um pouco, revelamos um ao outros detalhes, histórias de vida que nos surpreenderam e emocionaram, confidências ouvidas por algumas árvores grandes, velhas senhoras que escutaram tantas sabrinas e mauros. Quanto mais falávamos, mais crescia nossa admiração comum -assim senti, penso que ela também. Sabrina contou de sua decisão, falei-lhe de nosso apoio e alegria, de nossa alegria-triste, de nossa gratidão, da certeza de que ela nunca deixará nossa pequena empresa-comunidade, essência viva construída também por ela (e tanta gente!).
Sabrina e Aline são presenças, mesmo que a vida nos arrume a relação de outro jeito. Elas me ensinam que num mundo de “mais, mais, mais!”, há espaço para encontro com o sagrado de cada relação, de cada momento. Tudo pode se tornar sagrado, ensina Leonardo Boff: “Tudo é sacramento ou pode tornar-se. Depende do homem e de seu olhar. Se ele olhar humanamente, relacionando-se, deixando que o mundo entre dentro dele e se torne seu mundo, nesta mesma medida o mundo revela sua sacramentalidade”³.
¹ Conrad, Joseph. No coração das trevas, Hedra, 2008, São Paulo
² Nery, Prudente, “A Vida Consagrada à luz do Mistério Trinitário”, in Convergência 31/294, Jul-Ago 1996, p. 351-353.
³ Boff, Leonardo. Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos – minima sacramentalia, Editora Vozes, Petrópolis, 2004. p. 24
Os artigos aqui apresentados n�o necessariamente refletem a opini�o da Aberje
e seu conte�do � de exclusiva responsabilidade do autor. 2271
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