Oralidade como estratégia de interação
Reproduzo abaixo parte de meu artigo publicado na História Agora – a Revista do Tempo Presente, publicada em julho de 2011.
Entre os instrumentos de trabalho do historiador, segundo Le Goff (2003, p.112), está o testemunho. Desde Heródoto, o testemunho por excelência é o testemunho pessoal. No século XIII, os testemunhos são usados pelos monges nos seus sermões, cujo conteúdo pertence mais às experiências. Dessa forma, as memórias tornaram-se pouco a pouco elementos paralelos à história, possibilitando que a narração caia no gosto geral. Desde a Antigüidade, os grandes historiadores foram os narradores do passado recente. Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Políbio permitiram que, a partir do século V a.C., historiadores antigos conseguissem recolher uma boa documentação sobre o passado.
A historiografia antiga recorreu a testemunhos diretos na construção de seus relatos, um tipo de fonte que viria a ser desqualificada na segunda metade do século XIX e logo após teria restaurada sua validade no estudo do tempo presente (FERREIRA, 2002, p.314). Foi por volta da década de 1980, segundo Ferreira (2002, p.319), que se revalorizou a análise qualitativa e se resgatou a importância das experiências individuais, deslocando o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as situações singulares. Nassar (2009, p.301), já atraindo o tema para o ambiente organizacional, diz que “uma das formas pelas quais se conta a história são os testemunhos, que escondem as suas intenções de elogiar as empresas e as marcas que assinam as peças publicitárias. A produção se aproxima tecnicamente dos depoimentos de vida, nos quais se pretende retirar testemunhos que guardam distância a respeito do que se fala”.
Para Sarlo (2007, p.11-12), é muito claro: mudaram os objetos da história. De um lado, a história social e cultural passou a destacar os pormenores cotidianos articulados numa poética do detalhe e do concreto. De outro, uma linha da história para o mercado não se limita mais à narração de personagens privilegiados, mas sim adoto um foco próximo de todos os atores. Essa perspectiva explora as relações entre memória e história, como assinala Ferreira (2000, p.118), “ao romper com uma visão determinista que elimina a liberdade dos homens, coloca em evidência a construção dos atores de sua própria identidade e reequaciona as relações”, reconhecendo que o passado é construído segundo as necessidades do presente. Em artigo, Pollak (1989, p.5) destaca que este é um método para que as lembranças, durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de publicações, permanecessem vivas, sobremaneira numa sociedade civil impotente quanto ao excesso de discursos oficiais. As redes familiares e de amizades sempre serviram para vazão de lembranças dissidentes, na espera da hora da verdade. Aliás, a vivacidade das lembranças individuais são celebradas em sua difusão por redes familiares ou de sociabilidade afetiva e/ou política, que, guardadas em estruturas de comunicação informal, podem passar despercebidas pela sociedade englobante. Neste sentido, Domingos (2009, p.8) acresce que, como não há narrativa que não seja seleção de fatos vividos por personagens em um determinado tempo e espaço, “o ato de narrar é inevitavelmente um ato de deslocamento e de negociações entre a consciência e a inconsciência, gerando significativas formas de ser e estar no mundo”, daí que postula não haver na narrativa um ‘eu’ puro. Narrar histórias, portanto, trata justamente das relações humanas com conotações informativas, psíquicas, neurológicas e sociais como sendo um prazer universal (DOMINGOS, 2009, p.10).
Martins e Fortes (2007, p.47) acreditam que, com o advento das novas tecnologias, a oralidade ressurge com importância inegável e se torna, no meio corporativo, fator decisivo no relacionamento com diversos públicos, instaurando importantes transformações nos processos comunicativos contemporâneos. Como a preocupação não deve estar apenas na mensagem a ser transmitida, mas sim na forma, há um reconhecimento crescente da importância do discurso, da retórica e da oralidade como fatores que podem distinguir a comunicação organizacional com públicos estratégicos. O discurso e a retórica organizacional requerem configurações individuais e de integração grupal. Estas características igualmente envolvem a personalidade, a motivação, a liderança e a satisfação dos públicos. Convém desde já assinalar que a noção de retórica como discurso vazio ou enganoso é equivocada, afinal, como assinala Torres (online, 2002), “ao contrário, ela é o resgate de uma ‘gestão do discurso’ por meio de argumentos escolhidos dentro de uma tríade do conhecimento: lógica, emoção e ética”.
Zumthor (1993, p.18) menciona a existência de três formas distintas de oralidade: a primária, em que não se tem nenhum contato com a escrita; a mista, onde a oralidade convive com a escritura, apesar de exercer pouca influência no cotidiano; e a secundária em que a apropriação da escrita possibilita a manutenção do oral. Em artigo em recente coletânea sobre comunicação organizacional, Gaudêncio Torquato (2009, p.7-28) traz um postulado de defesa do “poder expressivo”, defendido por ele junto à topologia adotada por Amitai Etzioni e ao lado dos poderes remunerativo, normativo e coercitivo. A intenção foi mostrar o poder da comunicação como fundamental para as metas de engajamento e participação e obtenção de eficácia. Ele explica que se poder é a capacidade de uma pessoa em influenciar uma outra para que esta aceite as razões da primeira, isso ocorre por força da argumentação. A relação de poder pode ser referida a partir do ato comunicativo. A proeminência da oralidade é dada pela capacidade para integrar e harmonizar os discursos semântico e estético, com a condição de animar os ambientes, atrair a atenção e a simpatia de ouvintes e interlocutores. A nova questão é pensar sobre a efetividade destas emissões ou mesmo interações comunicacionais num universo de abundância, em que a aderência do conteúdo gere reflexão e conhecimento entre os interlocutores. Nesta perspectiva é que formatos como storytelling podem ser preciosos na garantia da atenção, num primeiro momento, e de estímulo à legitimação na sequência. O embasamento histórico como lastro para contação de histórias só reforça a credibilidade pela característica da verificabilidade, ainda que componentes ficcionais possam ser agregados à narrativa como forma de transcendência.
Desde a Antiguidade, a prática da retórica consiste no uso de argumentação como instrumento de gestão dos negócios humanos (HALLIDAY, 1998, p. 32). Para a pesquisadora, gestão é uma soma de atos administrativos e atos retóricos, sendo que “os comunicadores empresariais enfrentam novas cobranças profissionais: serem co-gestores da empresa, tratarem a comunicação organizacional da Nova Era como importante ferramenta estratégica de gestão [...] estão finalmente assumindo a construção simbólica da realidade empresarial como legítimos agentes retóricos que são” (HALLIDAY, 1998, p. 32).
É preciso reconhecer, todavia, que a investigação sobre histórias em organizações, desdobrada em narrativas, histórias, relatos, contos, mitos, fantasias e sagas, é um tema ainda novo. Por isto, é tão importante pesquisar os processos de contação de histórias como ativadores de um renovado envolvimento da comunicação organizacional com os públicos desejados e de uma postura de interlocução e de escuta amplas em direção aos interagentes sociais. O storytelling vem justamente favorecer a empatia, uma habilidade comunicativa com alto nível valorativo e que motiva, de maneira extraordinária, o desenvolvimento relacional.
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