A memória como base da comunicação organizacional
Reproduzo abaixo parte de meu artigo publicado na revista ComTempo, publicação eletrônica da Pós-Graduação da Faculdade Cásper Líbero neste final de 2011.
Partindo do conceito que memória organizacional é uma seleção subjetiva daquilo que é o passado, com presença afirmada no presente e influência no futuro da empresa ou instituição (NASSAR, 2009, p.295), fica claro o raciocínio que conduz à compreensão da pertinência desta área como parte indissociável da comunicação nas organizações, sistemas abertos cada vez mais complexos. E ainda, da memória como contribuinte efetiva do enfoque das interações informativas e relacionais, sobremaneira na valoração de ativos intangíveis e nos postulados e atributos de marcas potencializados a partir de um sentido histórico lastreador. A percepção e a narrativa consequente vinda de públicos diversos sobre organizações estão impregnadas de sensações dadas por um contexto econômico e social, e certamente podem ser fortalecidas mediante o resgate histórico destes agentes. Para bem além das decisões de posicionamento mercadológico, cuja exigência de foco também acaba por vezes desvirtuando o que seria a essência de surgimento e conduta da organização, o que se chama à atenção é a possibilidade diferenciadora de utilização da história lembrada como recurso de atratividade e genuinidade.
Worcman (2004, p.23-24) defende um modelo de memória na empresa como agente catalisador no apoio a negócios, na coesão de grupo e elemento de responsabilidade social e histórica. São experiências acumuladas e transformadas em conhecimento. Afinal, “a história de uma empresa não deve ser pensada apenas como resgate do passado, mas como marco referencial a partir do qual as pessoas redescobrem valores e experiências, reforçam vínculos presentes, criam empatia com a trajetória da organização” (WORCMAN, 2004, p.23).
Os estudos de Nassar (2008b, p.172-173) comprovam que estes temas servem ao reforço do pertencimento, da confiança nos inúmeros públicos, da gestão do conhecimento e do capital intelectual e da reputação acumulada por uma organização. O pesquisador ressalta que, quando o resgate histórico é feito através do registro de depoimentos, são os funcionários antigos a fonte de informação mais utilizada. Como assinala Maricato (2006, p.126), “ao compreender a vida de uma organização disposta na linha do tempo, podemos distinguir quão importantes foram e são os fatos históricos, as reações, as linhas de comando e o perfil que ela vai incorporando, traduzindo-se na própria maneira de ser da organização”. O sentido da memória para a vida e as emoções humanas têm inspirado as organizações e suas estratégias, ações e comportamentos. É fundamental equilibrar os aspectos econômicos, sociais e psicológicos de suas atividades produtivas e a força da história e da memória como elementos da definição da identidade, imagem e reputação. Diz Nassar que “a partir das expressões culturais de uma empresa, as sociedades e mercados se reconhecem para o bem e para o mal em marcas, produtos, valores e atitudes. Ao escavar suas memórias, na linha do tempo de sua trajetória, as empresas talvez conquistem o reconhecimento de suas responsabilidades históricas em relação ao estado atual do mundo (NASSAR, 2007, online)”.
Uma dada história é uma narrativa individual, social ou organizacional estruturada a partir de memórias, que por si só são seletivas dentre experiências boas e más desenvolvidas – uma ‘memória relacional’ (NASSAR, 2008b, p.111-112). Num mundo em transformação, mudanças corporativas constantes levam os públicos a precisar de uma base de orientação, exatamente por meio da memória. Como manifesta Nassar (2006, online), porque “armazenar informação é uma forma de manter a sabedoria [...] e fortalece o sentimento de pertencer”.
E O STORYTELLING - O reflexo de uma vontade de ressignificação da existência vem sendo imenso no mundo do trabalho e na comunicação organizacional, exigindo novos formatos de construção e difusão de mensagens e de estabelecimento de diálogo e de relações de troca. Discursos oficiais e convencionais passaram a ser relativizados e comparados com as visões de mundo de outros agentes. Postula-se aqui um afastamento da atrofia da experiência no mundo atual, porque quanto mais conduzida for a intenção da mensagem narrada, mais autoritária será e menos aproximativa. A narrativa genuína seria um discurso aberto, como será exposto a seguir, que prescindiria de explicação imediata e onde a ‘moral da história’ estaria para ser construída em cada um – bem diferente da tendência informativa anestesiante que ainda se constata na fala organizacional. Quanto mais se estiver exposto a um bombardeio de estímulos, a consciência aciona uma proteção retaliadora da memória. E esta qualidade plural da narrativa, que pode agregar diversos elementos de elaboração distinta (valores, padrões linguísticos, mitos, metáforas, fatos), reconfigura as mensagens e as trocas.
Como assinala Curvello (2010, p.79), durante muitos anos as organizações construíram seus discursos legitimadores com base na racionalização – “com isso, a empresa pareceria perder muito do seu poder de sedução, pela sisudez do repertório linguístico”. Ele acrescenta que um baixo nível de lealdade institucional, uma diminuição da confiança informal e a diluição do conhecimento dos trabalhadores decorrem da desestruturação das narrativas organizacionais. Matos (2010, p.36) acrescenta que a palavra metafórica, simbólica ou ficcional é uma maneira de inspirar esse universo organizado em torno da precisão, do rigor, da análise, “ou seja, firmemente ancorado numa realidade hiperconcreta”.
Neste ínterim, cresce a atribuição de relevância da oralidade, como comunicação espontânea que permitiria uma experiência mais viva e polissêmica – numa abertura de sentidos mais adequada à quantidade de pensamentos circulantes e completamente avessa à linguagem dura e fechada das comunicações até então dominantes. As abordagens agora precisariam ser mais poéticas, com uso de metáforas que auxiliariam na união dos mundos material e espiritual. A fala abre um mundo de interferência, porque o resultado é sempre mutuamente constitutivo, e portanto inclusivo. As figuras do emissor e do receptor se misturam num espaço expressivo forte, onde a atenção – tida como cada vez mais pulverizada e de difícil captura – resta natural e focada. A escrita fixa o conteúdo, mas na oralidade há um momento que não se repetirá igual. Este tom artesanal encontra eco num homem simbólico e espiritual que não acredita mais no progresso a qualquer custo. A narração não tem a pretensão de transmitir um acontecimento pura e simplesmente, mas sim envolve os ouvintes. Há experiência onde entram em conjunção na memória certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo. Por isto que as histórias estão tão em voga.
Cabe aqui resgatar e valorizar, então, que entre os instrumentos de trabalho do historiador, segundo Le Goff (2003, p.112), está o testemunho. Desde Heródoto, o testemunho por excelência é o pessoal. No século XIII, os testemunhos são usados pelos monges nos seus sermões, cujo conteúdo pertence mais às experiências – especificamente questões de narrativas e experiência são tratadas em item a seguir. Desde a Antiguidade, os grandes historiadores foram os narradores do passado recente. Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Políbio permitiram que, a partir do século V a.C., historiadores antigos conseguissem recolher uma boa documentação sobre o passado.
Thompson enumera algumas possibilidades da história oral como meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história: “pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que existam entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições e o mundo exterior; e na produção da história pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras (Thompson, 1992, p.22).”
Pollak (1989, p.5) destaca que este é um método para que as lembranças, durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de publicações, permanecessem vivas, sobremaneira numa sociedade civil impotente quanto ao excesso de discursos oficiais. As redes familiares e de amizades sempre serviram para vazão de lembranças dissidentes, na espera da hora da verdade. Aliás, a vivacidade das lembranças individuais são celebradas em sua difusão por redes familiares ou de sociabilidade afetiva e/ou política, que, guardadas em estruturas de comunicação informal, podem passar despercebidas pela sociedade englobante (POLLAK, 1989, p.8).
Neste sentido, Domingos (2009, p.8) acresce que, como não há narrativa que não seja seleção de fatos vividos por personagens em um determinado tempo e espaço, “o ato de narrar é inevitavelmente um ato de deslocamento e de negociações entre a consciência e a inconsciência, gerando significativas formas de ser e estar no mundo”. Daí que postula não haver na narrativa um ‘eu’ puro. Narrar histórias, portanto, trata justamente das relações humanas com conotações informativas, psíquicas, neurológicas e sociais como sendo um prazer universal (DOMINGOS, 2009, p.10).
As histórias de vida comportam contínuas reestruturações de eventos passados e, ainda que se mantenham núcleos fundamentais, os fios condutores, as contingências do presente se integram a todas as dimensões da narrativa (MENESES, 1992, p.11). É inegável que o testemunho oral tem sido amplamente discutido como fonte de informação sobre eventos históricos, cabendo agora pensar na atitude do narrador em relação a eventos, à subjetividade, à imaginação e ao desejo que cada indivíduo investe em relação a sua história (PORTELLI, 1993, p.41).
É preciso entender que a experiência tem relação com a sabedoria, e essa com a tradição. A tradição, por sua vez, como diz Arendt (1987, p.168), “transforma a verdade em sabedoria”, e por isto a sabedoria seria “a consistência da verdade transmissível”. Como afirma Benjamin (1986, p.200), a sabedoria é o “conselho tecido na substância viva da existência”. E portanto sábio é o indivíduo experiente, aquele que não só soube acolher a experiência viva da tradição como também transmiti-la. A sabedoria, como aponta Tiburi (2000, p.90), não é apenas “um conteúdo subjetivo ou objetivo, mas também uma forma de relação com o mundo ou o outro, inimiga da pressa e do imediatismo. Por isso, ela é o elemento presente na narração, a qual envolve a compreensão das camadas mais escondidas do existir”. Meihy (2010, p.180) entende que a “experiência é consagradora da suscetibilidade humana, sensível e sujeita aos desvios de percurso comuns à oralidade”.
Ao sugerir formatos de construção do storytelling, Denning (2006) fala na característica única, portanto personalizada, do discurso com individualidade, que reside não nos papéis representados socialmente, mas nas experiências efetivamente vivenciadas pelo orador. Diz ele que “se a audiência puder entender as experiências cruciais que contribuíram para a sua formação como indivíduo, poderá não apenas entender como você é, mas também vai inferir como você agiria no futuro” (DENNING, 2006, p.74). Estes relatos de eventos pessoais permitem ao público criar intimidade, compartilhar, identificar-se, tornando o narrador mais confiável. A explicação para isto está na “natureza fractal das histórias de identidade – do mesmo modo que a forma mais minúscula de um corpo vivo pode revelar o DNA de uma pessoa, também uma pequena história, bem escolhida, poderá lançar luz em uma vida inteira” (DENNING, 2006, p.74). Do ponto-de-vista pessoal, o relato de uma história individual é a reafirmação contínua de uma identidade interiorizada. Pode sofrer reconstrução, desde que seja uma busca de aperfeiçoar a própria capacidade de relacionar consigo mesmo, com a passagem do tempo, com o ambiente circundante e com outras pessoas.
O storytelling vem justamente favorecer a empatia, “uma habilidade comunicativa com alto nível valorativo e que motiva, de maneira extraordinária, o desenvolvimento relacional” (FERNÁNDEZ COLLADO, 2008, p.47, tradução nossa). Os interagentes, com esta sintonia estabelecida pelo formato da narrativa, tendem a uma disponibilidade de atenção mais intensa e duradoura. A reciprocidade acaba favorecida, com um interesse comum de crenças e temas que traz uma identificação entre os pólos e insinua uma maior intimidade e uma relação simétrica que dá ideia de igualdade comunicativa, com supressão de hierarquias. Mais ainda, a proposta do storytelling é que os envolvidos liberem sua capacidade de criar e de reinventar o mundo, de ter fantasias aceitas e exercitadas, para que possam explorar seus limites – panorama bastante adequado ao multiprotagonismo da sociedade atual.
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e seu conte�do � de exclusiva responsabilidade do autor. 1968
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