Memória tem inspiração rizomática e pode transformar o futuro
Há uma mistura significativa de vocabulário quando empresas organizam e falam sobre seus projetos de memória – em cases levados a prêmios, em releases, em websites, em entrevistas, em relatórios. Como comunicadores, precisamos buscar a precisão linguística e é por isto que escrevo algumas linhas na edição deste mês da coluna.
A história busca produzir um conhecimento racional, uma análise crítica através de uma exposição lógica dos acontecimentos e vidas do passado. Ela se resguarda no tangível – em documentos, monumentos, arquitetura, filmes, fitas comprobatórios em busca de uma única verdade (ou, ao menos, a verdade mais aceita). A memória, por sua vez, também é uma construção do passado, mas pautada em emoções e vivências, ela é flexível e os eventos são lembrados à luz da experiência subseqüente e das necessidades do presente. Ela se resguarda nos testemunhos.
A memória recupera a história vivida, história como experiência humana de uma temporalidade, e opõe-se à história como campo de produção de conhecimento, espaço de problematização e de crítica. Na operação histórica, o passado é tornado exclusivamente racional, destituído da aura de culto, metamorfoseado em conhecimentos, em representação, em reflexão; na constituição da memória, ao contrário, é possível reincorporar a ele, passado, um grau de sacro, de mito.
A caracterização mais freqüente da memória é de mecanismo de registro e retenção, depósito de informações, conhecimento e experiências, que também está suscetível a esquecimentos e ocultações. Pode-se definir memória como um conjunto de funções cerebrais que permitem ao homem guardar as mensagens, mas há que se levar em conta a permanente possibilidade de seleção destes conteúdos antes de sua evocação. É de fortes sentimentos e emoções que memórias diversificadas irrompem e invadem a cena pública, buscando reconhecimento, visibilidade e articulação. Em geral, suprem um espaço que a racionalidade história é impotente para exprimir, atualizando no presente vivências remotas que se projetam em relação ao futuro.
A memória de grupos e coletividades se organiza, reorganiza, adquire estrutura e se refaz, num processo constante, de feição adaptativa. Ao contrário da noção de pacote de recordações, memória é um processo permanente de construção e reconstrução. É preciso destacar que o campo da memória, e inclusive da própria comunicação organizacional, nutre-se de uma inspiração rizomática (DELEUZE; GUATTARI, 1995), porque se desenvolve numa diversidade de interfaces. O rizoma é apresentado como multiforma, uma haste subterrânea com ramificações variadas de superfície e com bulbos ou tubérculos, e neste sentido superando a visão de raiz, de ponto único de eclosão. A memória postula justamente a multiplicidade e a convivência de diversos sujeitos, que reconstroem experiências passadas, a luz ou não das intenções do presente. Isto combina imensamente com os princípios desta nova concepção de comportamento e inteligência: “as multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudo multiplicidades arborescentes [...] não têm sujeito nem objeto” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.15). A metáfora do mapa é empregada pelos autores e apresenta sintonia com a memória como algo conectável em todas as direções, desmontável, reversível e suscetível a modificações, visto que, conforme comentam Deleuze e Guattari (1995, p.21), “uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas”. Não combina, portanto, com os sistemas pensados a partir da árvore ou da raiz, porque estes são hierárquicos e comportam centralidades de significância. Assim como a memória, o rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões [...] não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI, p.31) e, nesta perspectiva, ambos têm como tecido a conjunção ‘e’, não excludente.
Sempre que uma história é contada, fala dos atores e dos feitos em contexto particular e apresenta experiências que contribuem para a aprendizagem dos narradores, leitores ou ouvintes. Segundo o contexto no qual é criada/estruturada, a história pode gerar espaços de reflexão do passado e inspiração para a transformação do futuro. Barthes (1971, p.20) colabora com um conceito bastante preciso e simples, ao dizer que “a narrativa está presente em todos os lugares, em todas as sociedades; não há, em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas por homens de cultura diferente [...] a narrativa está aí, com a vida”.
Nassar (2009, p.303) visualiza que a comunicação tem primado pela objetividade e pelas mensagens de perfil quantitativo, não havendo tempo para dialogar, fantasiar e para contar histórias. Isto é um paradoxo diante da constatação de que a subjetividade organizacional viabiliza a formação de uma cultura do sonho, da participação e da inovação, que são vitais para o atendimento de demandas sociais intangíveis e de legitimidade. Quanto trata de dimensões intangíveis, o pesquisador refere-se à reputação, à credibilidade, à confiança, que determinam a qualidade dos relacionamentos entre a organização, seus públicos e sociedade. Neste sentido, é importante pensar nos modos de funcionamento cognitivo, que Jerome Bruner (1997, p.14) divide em lógico-científico (ou paradigmático) e narrativo. O primeiro busca gerar conhecimento com base na verificação da veracidade ou falseamento de hipóteses, adotando uma descrição e explicação formais e objetivadas do contexto que as geram. O modo narrativo, por sua vez, consiste em contar boas histórias, dramas envolventes, relatos críveis e trata de intenções e ações humanas e das vicissitudes das intenções humanas. A abordagem, neste segundo caso, concentra-se em compreender o particular, em buscar os significados que as pessoas constroem, baseando-se em suas histórias, sejam elas orais ou escritas.
E então, aquele projeto na sua empresa é de história ou de memória?
Referências
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1971.
BRUNER, Jerome. A cultura da educação. Porto Alegre: Artmed, 2001.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.1. São Paulo: 34, 1995.
NASSAR, Paulo. História e memória organizacional como interfaces das relações públicas. In: KUNSCH, Margarida M. Krohling (Org.). Relações Públicas - história, teorias e estratégias nas organizações contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2009. p.291-306.
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