Contribuição para uma teoria das Crises IV
No liberalismo, a busca do equilíbrio sem investigar as causas estruturais
“O verdadeiro espírito positivo consiste sobretudo em preferir sempre o estudo das leis invariáveis dos fenômenos ao de suas causas propriamente ditas, primária ou finais, numa palavra, a determinação do como à do por quê.”
Auguste Comte, Sociologia
Na teoria liberal, a eclosão de crises é ignorada. Ou minimizada. O espelho da ação liberal é o otimismo. O cético se volta para as contradições, os dramas, os erros. Para o liberal, o fio condutor para resolver as crises, se é que se dispõe a reconhecê-las como tais, encontra-se na razão prática combinada com a imutável esperança na ética, na lógica e na consciência 1.
Como acreditava Heráclito, fonte da formação de Platão, nada é mais real do que a mudança e, também, a distinção entre realidade e aparência, mas a ideia chave do liberalismo é que a humanidade avança continuamente na direção do progresso. A mudança é a transição de um patamar para o outro, sendo a natureza não aparente das coisas mais forte do que a aparente. Isto não implica, porém, que o realismo, que compartilha a demonstrabilidade e irrefutabilidade com o idealismo, não seja capaz de antecipar-se às crises.
Na visão liberal, as crises irrompiam das mudanças sociais defendidas no alvorecer do século XIX pelos chamados utopistas. Charles Fourier, Robert Owen e Saint-Simon, cada um a sua maneira, pregavam o fim da economia de mercado, lançando a ideia de construção de uma nova sociedade para o futuro 2. Como ideologia, como designação de agentes históricos e como teoria da sociedade e da história, o liberalismo defende teses arrojadas e fascinantes. A liberdade individual, a liberdade de imprensa e de associação, são teses liberais clássica que se tornaram o alicerce político e moral dos Estados Unidos. Mas seriam aplicadas na prática em países como o Brasil?
Sem dúvidas, é um credo que procura encarar as crises com visão mais administrativa do que política, com pragmatismo, flexibilidade prática e realismo. Isto se deve à própria “corrupção”, no sentido de não concretização das propostas originais, do liberalismo. Nele, a análise estrutural não é o ponto forte, como não e parte do pensamento liberal penetrar na substância das coisas. A ordem e as conexões com o mundo real se reproduzem em conformidade com as leis imutáveis da natureza, embora o mundo seja novo a cada dia como pregava Heráclito.
Ou seja, existe uma harmonia natural na reprodução do mesmo, podendo mudar os atores, as épocas, as situações. O marco dessa repetição foi a Revolução Francesa. Burguesia e operariado agiram conjuntamente para derrubar a realeza, mas a seguir se separaram em confrontos contínuos. E a sociedade liberal foi se afastando das suas qualidades intrínsecas. Uma delas, a ética e a responsabilidade nos negócios. Além disso, a tolerância com a própria negação do liberalismo e com as diferenças. São aspectos que não podem ser esquecidos na análise das crises sob a ótica liberal. Há muita riqueza no resgate dos princípios liberais.
Assim, a busca de um sistema de equilíbrio é uma constante. O liberalismo foi uma ideologia firme no período de expansão da sociedade industrial e das classes médias, mais precisamente até os anos 50-60 do século XX. Depois recuou. Por quê? Comte ensinava: uma sociedade só existe quando se exerce “uma ação direta e combinada” . Caso contrário, “há somente um aglomerado de certo número de indivíduos sobre o mesmo solo” 3. Locke admite que os homens se unem na sociedade política para proteger sua propriedade privada, mas que o homem não se faz membro de uma sociedade apenas por “ usufruir de privilégios e proteção”, é imperativo que existam leias “ mediante o consentimento comum” para definir padrões de probidade e improbidade e “ medida comum para solucionar todas as controvérsias entre eles” 4. E, John Stuart Mill, um dos pais fundadores do liberalismo, para estabelecer conexões entre liberdade e verdade, argumenta: a finalidade da liberdade é a verdade, e, em consequência, a liberdade, deve ser limitada pela verdade.
Mas o que é a verdade? Seus fundamentos estão na autonomia de cada um de decidir o que deseja ou não deseja fazer, o que pode e o que não pode suportar, o que o indivíduo é e o que deseja ser. E como harmonizar as liberdades individuais e as liberdades sociais?
Talvez os seus limites tenham sido saturados pela própria modernidade – a construção do capitalismo. De qualquer forma, fica a lição: a teoria não é uma promissória que pode ser cobrada a qualquer instante. É função de uma prática na busca dos fatos verdadeiros. Crises não ocorrem por geração espontâneas. Comumente, são crises anunciadas.
Referências
1 - “A avareza, a cobiça e um inescrupuloso impulso aquisitivo existiram sempre e em toda época. A aquisição, em desafio a todas as normas, de mais artigos que os necessários para viver – o capitalismo de aventureiros especulares, lucradores, colonialistas e similares – é natural a qualquer sistema econômico que use dinheiro. Mas a afirmação de ganhar dinheiro pelo dinheiro, em si, não como uma aventura, mas como uma constante obrigação moral, não é uma coisa de se esperar. Ao contrário, existiu apenas durante uma certa época – só em certa camada social e só no ocidente. Antes do surgimento disso, o homem ocidental, sobretudo o burguês ocidental, tinha de aprender uma determinada conteúdo de vida. Era necessário que tivesse aprendido a ver o trabalho racional, metódico, como dever moral” (WEBER, 2003, p. 403)
2 - Charles Fourier (Besançon, 7 de abril de 1772 – Paris, 10 de outubro de 1837); Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon (Paris, 17 de outubro de 1760 – Paris, 19 de maio de 1825), Robert Owen (Newtown, 14 de maio de 1771 – Newtown,17 de novembro de 1858). Na vertente owenista, o germe do pensamento está acondicionado na Revolução Industrial. Na concepção sansimoniana e fourierista a matriz é a Revolução Francesa. Owen assumiu a direção da tecelagem New Lanark, na Escócia, em janeiro de 1800. Era então uma comunidade operária com 800 pessoas, das quais cinco centenas de crianças pobres. O negócio era lucrativo, mas Owen, que amealhara uma fortuna substancial, não pensava apenas nos lucros, mas em construir um novo sistema moral que combinasse prosperidade com cooperação, partilha de lucros, rejeição do trabalho industrial, desumano e repetitivo, e que também fosse o oposto do sistema de concorrência mercantil. Claude Henri Houvroy, conde de Saint-Simon, postulava elevar a dignidade humana. Durante a Revolução Francesa financiava, com recursos próprios, cursos públicos para as classes populares. Pensava uma nova concepção filosófica, um novo sistema social, uma nova religião, a religião industrial. Fourier, a exemplo de Saint-Simon, também viveu as frustrações da Revolução Francesa. Foi em 1799, como decorrência de lenta maturação, que ele percebeu que a civilização não é o destino do homem e que uma sociedade feliz e harmoniosa poderia existir. Ele escreve livros para expor suas ideias: destruir o comércio, assegurar a felicidade humana.
3 - COMTE, 1983, p. 127.
4 - LOCHE, 2005, p. 495-6.
Leituras recomendadas
BERTRAND, Saint-Sernin. A razão no século XX. Rio de Janeiro:José Olympio, 1998.
COMTE, Auguste. Sociologia. Tadução Evaristo de Moraes Filho. 2ed. São Paulo: Ática, 1983.
LOCKE, John. Dois trados sobre governos. Tradução Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MARCUSE, Hebert. Critique de la tolérance pure. Paris, Les Éditions John Didier, 1969.
-------------------------. Cultura e Sociedade (vols. 1 e 2). São Paulo: Paz e Terra, 2006,v.1-2.
--------------------------. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: LTC, 1999.
WEBER, Marianne. Weber uma biografia. Niterói: Casa Jorge Editorial, 2003.
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