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Pollyana Ferrari


Pollyana Ferrari é escritora e pesquisadora em Comunicação Digital. Professora de hipermídia e narrativas transmídias nos cursos Comunicação e Multimeios, Jornalismo e na Pós-Graduação Strictu Sensu de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD), todos ligados à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora dos livros “Jornalismo Digital”, ”Hipertexto, Hipermídia”, “A força da mídia social” e “No tempo das telas”. E instrutora da Aberje desde 2001. 

Troque os átomos inalteráveis de Lucrécio, pelos atributos de Ovídio

              Publicado em 17/06/2011

O sol tímido de inverno me convida ao desacelerar necessário. Comecei resgatando a receita de brownie da minha mãe. O caderno de receitas amarelado no fundo da escrivaninha trazia a beleza da grafia forte de minha mãe e me levava automaticamente para cozinha, como se eu seguisse o cheiro de bolo quente e do café sendo passado no coador de pano para o lanche da tarde.

O simples folhear no caderno de receitas me trouxe o barulho da cozinha de minha infância: uma casa sempre em movimento, televisão ligada, vizinhas batendo na porta, cachorro latindo, cheiros e barulhos de panelas sempre no fogo. Mal terminava o almoço, já se pensava no lanche ou na receita do jantar. Resgatar cognitivamente situações e imagens se faz necessário para não perder o brilho no olho, para não virarmos seres automáticos e envelhecidos.

Como pensar estratégias 2.0 com intuito de aproximar vidas, histórias e desejos sem o brilho no olho? Impossível. Como entender a comunicação horizontal, popular e participativa presente nas mídias sociais se ainda pensamos em hierarquias, castas sociais, público-alvo? Além do resgate imagético e sensorial, recurso disponível a todos, ler Ítalo Calvino também fornece uma ajuda e tanto.  Calvino escreveu “Seis propostas para o próximo milênio”, em 1985. Seu último livro (meu preferido) procura analisar a narrativa da vida pelo viés da leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade.

 “Cheio de boa vontade, buscava identificar-me com a impiedosa energia que move a história de nosso século, mergulhando em seus acontecimentos coletivos e individuais. Buscava alcançar uma sintonia entre o espetáculo movimentado do mundo, ora dramático, ora grotesco, e o ritmo interior picaresco e aventuroso que me levava a escrever.

(...) Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa. O único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa é Perseu, que voa com sandálias aladas.

(...) Foi o que fez Milan Kundera, de maneira luminosa e direta. Seu romance A insustentável leveza do ser é, na realidade, uma constatação amarga do inelutável peso do viver: não só da condição de opressão desesperada e all-pervading que tocou por destino ao seu desditoso país, mas de uma condição humana comum também a nós, embora infinitamente mais afortunados. O peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão; a intrincada rede de constrições públicas e privadas acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas. (...) Apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência escapam à condenação. Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço”.

As mudanças sociais, levadas pelo avanço tecnológico, atingiram um patamar sem precedentes na história recente. O impacto da chegada da web - e suas inúmeras possibilidades de interação – transformou o público consumidor em agente e hoje a “aldeia global”, vislumbrada por Marshall McLuhan, tornou-se realidade nas redes sociais. O desafio para Comunicação vai além da identificação de seus produtores pelo público, passando pelo desafio de criar experiências de envolvimento, de participação e interação.

É preciso trocar a lente para entender a sociedade 2.0. Brilhantemente nos ensinou Calvino, relembrando Metamorfoses de Ovídio. “Tudo pode assumir formas novas; o conhecimento do mundo é a dissolução de sua compacidade. Enquanto o mundo de Lucrécio se compõe de átomos inalteráveis, o de Ovídio se compõe de qualidades, de atributos, de formas que definem a diversidade de cada coisa, cada planta, cada animal, cada pessoa”.


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