A contação de histórias entre mitos e experiências: refletindo sobre as bases do storytelling
Segundo Echeverría (2003, p.20), antes da invenção do alfabeto, os seres humanos viviam na “linguagem do vir-a-ser”. A linguagem e a ação estavam unidas, as histórias narravam as ações dos atores e, desta maneira, aprendia-se. Contudo, o alfabeto separou o narrador da linguagem e da ação, e o surgimento do texto escrito produziu a mudança para a linguagem das ideias. A história geralmente se constitui a partir da narrativa linguística e é compreendida como fenômeno humano e social, que surge no processo de interação, no jogo coletivo de indivíduos que, juntos, coordenam ações (ECHEVERRÍA, 2003, p.362).
Os relatos nem sempre se referem à forma pela qual a história se desenrolou, mas como ela poderia ter ocorrido, portanto não incidem na realidade, mas sim na possibilidade. Portelli (1993, p.50) explica que, pondo em contraste o mundo desejável com o existente e reclamando que, só por acidente, aquilo não aconteceu, as hipóteses permitem ao narrador transcender a realidade como dada e recusar a se identificar e se satisfazer com a ordem existente. Os relatos são criações narrativas com espontaneidade. O passado narrado carrega sempre uma opinião, porque “a arte do narrar envolve a coordenação da alma, da voz, do olhar e das mãos” (FROCHTEGARTENN, 2005, p.372).
A narração é uma prática de linguagem e se renova a cada experiência de recordar, pensar e contar, porque “a narração avança e recua sobre a linha do tempo, como que transbordando a finitude espaço-temporal que é própria dos acontecimentos vividos” (BENJAMIN, 1986a, p.37). A narração doa um tempo e um lugar, uma sequência e uma causalidade às reminiscências. Como diz Schank (apud PEREIRA; VEIGA; RAPOSO; FUKS; DAVID; FILIPPO, 2009, p.101), “a mente pode ser vista como uma coleção de histórias, coleção de experiências já vividas”.
Lucena Filho, Villegas e Oliveira (2008, online) atestam que as histórias acompanham as origens sociais do ser humano na tradição oral e escrita. Sempre que uma história é contada, fala dos atores e dos feitos em contexto particular e apresenta experiências que contribuem para a aprendizagem dos narradores, leitores ou ouvintes. Segundo o contexto no qual é criada/estruturada, a história pode gerar espaços de reflexão do passado e inspiração para a transformação do futuro. Para Terra ([s.d.], online), a humanidade vem contando histórias de forma ininterrupta desde que adquiriu a fala ou mesmo antes disso, desde que aprendeu a gesticular e se comunicar. De fato, muitos antropólogos dizem que é a capacidade de contar histórias que separou o homem de outros primatas ao longo da evolução. Barthes (1971, p.20) colabora com um conceito bastante preciso e simples, ao dizer que “a narrativa está presente em todos os lugares, em todas as sociedades; não há, em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas por homens de cultura diferente [...] a narrativa está aí, com a vida”.
A semiótica, ciência que estuda as estruturas linguísticas e as formas de comunicação, continua Terra ([s.d.], online), relata que o ser humano transmite quase 700 mil sinais físicos distintos, incluindo cerca de 1.000 posturas corporais, 5.000 tipos de gestos e 250.000 expressões faciais, dada sua capacidade natural de transmitir sinais, informações e conhecimento. Sobre isto, Benjamin (1986b, p.220-221) sentencia que a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz, e que, “na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos [...] que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito”. Ewald (2008, online) fala que, ao enfatizar a conexão entre narrar e lembrar, há uma exposição da “ligação intrínseca que há entre a memória, narrativa oral e ação social”. A história é construída socialmente, através de uma interação, nos momentos de espacialização, por meio da voz, do corpo e das inscrições.
Segundo Christian Salmon (apud DOMINGOS, 2008b, p.95), autor de Storytelling : La machine à fabriquer des histoires et à formater les esprits, narrar é viver, ou seja, produzir um storytelling revival, onde as narrativas pertencem às grandes categorias de conhecimento das quais o homem se serve para compreender e ordenar o mundo.
Quando se fala de histórias, está-se dizendo que se inserem em um discurso histórico, em uma meta-história particular caracterizada pela coerência de uma comunidade que vive numa determinada linguagem. Assim, as histórias proporcionam aprendizado à medida em que revelam estruturas de coerência nas quais estão incluídos o tempo e os feitos dos atores nele envolvidos (ECHEVERRÍA, 2003, p.363).
Postula-se que os relatos contenham uma atmosfera de mito. Vale dizer que, em grego antigo, os termos mythos e istoria tinham em comum o sentido do discurso ou narração, sendo que o primeiro traz noção de trama e conto e o segundo de interrogação e exame (PASSERINI, 1993, p.29). É sabido que Tucídides, ao conceituar a história, faz uma distinção clara entre uma ciência de análises cuidadosas e os mythódes, ou sejam as tradições orais conectadas com o reino do fabuloso. Os mitos, diferentemente da história, são narrações que tentam exprimir dimensões divinas ou sobrenaturais no entremeio da abordagem racional, buscando ser mais agradáveis e utilizando um discurso que dispensa demonstração. Ora, “as histórias de vida podem ser vistas como construções de mitobiografias singulares, usando opções de recursos diversos, que incluem mitos, combinando o novo e o antigo em expressões únicas” (PASSERINI, 1993, p.39).
Como assinala Eliade (2001, p.72), o tempo considerado sagrado e forte é o tempo da origem, da cosmogonia, da criação da realidade, que serve como inspiração permanente. Projetos de memória podem funcionar, portanto, como reatualizações rituais do tempo original e não meramente como comemoração festiva de acontecimentos passados. Os ritos e rituais são embasados exatamente nesta premissa de recitação, onde o regresso ao tempo de origem é simbolicamente nascer de novo e retomar energias, dado que “a vida não pode ser reparada, mas somente recriada pela repetição simbólica da cosmogonia” (ELIADE, 2001, p.74). Os participantes dos rituais tornam-se contemporâneos do acontecimento mítico retratado – saem do tempo histórico (constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais) e reúnem-se no tempo primordial e indestrutível. Nas festas, haveria uma experimentação da santidade da existência humana como criação divina, já que no resto do tempo há sempre o risco de esquecer-se do que é fundamental. Completa o autor: “o mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do tempo. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou heróis civilizadores” (ELIADE, 2001, p.84).
O mito é a história do que se passou na origem, a narração do que seres divinos fizeram, tornando-se verdade absoluta. A função mais importante do mito é, pois, ‘fixar’ os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas. Ele complementa: “tudo quanto os deuses ou os antepassados fizeram – portanto tudo o que os mitos contam a respeito da atividade criadora – pertence à esfera do sagrado [...] Em contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é uma atividade vã, ilusória, enfim, irreal” (ELIADE, 2001, p.85).
É interessante registrar o conceito de mito em Lévi-Strauss (1970, p.140), para quem “mito é, ao mesmo tempo, uma estória contada e um esquema lógico que o homem cria para resolver problemas que se apresentam sob planos diferentes, integrando-os numa construção sistemática”. A tentativa de estudar e interpretar o mito é importante para a compreensão do papel assumido pelo sistema simbólico, tanto como elemento integrador e definidor da identidade da empresa, como revelador dos mecanismos de poder. E neste panorama é que surgem os heróis, como legítimos portadores de uma verdade sobre o destino da empresa, sobre o perfil adequado de seus empregados e sobre os padrões de relações de trabalho desejados. São das histórias de atos de coragem, normalmente mitológicas, que nascem os heróis, que serão personificadores de valores e provedores de modelos de comportamento. Eles não têm existência a priori, mas vão sendo construídos e permitem até concessões dentro da rígida história oficial.
Falando sobre estudos de Robert McKee, Douek (2009, p.39) diz que storytelling é sobre arquétipos e não estereótipos: “enquanto as histórias estereotipadas ficam em casa e seus conflitos terminam em si mesmos, as histórias arquetípicas viajam os quatro cantos do mundo em diversas dimensões, fazendo o espectador viver uma realidade ficcional que ilustra o seu próprio dia-a-dia.
Um ponto relevante diz respeito à crescente demanda do grande público pela história vivida com a valorização das obras de history makers (FERREIRA, 2002, p.326). Essa produção tem sido vista como mais atraente por apresentar uma narrativa de leitura ou de escuta mais agradável e de mais fácil compreensão. Afinal, como bem assinala Meneses (1992, p.16), o que o público deseja são lembranças de eventos que sejam “narráveis” e em que a contingência da materialidade seja compensada pela invenção da narrativa. Nisto, Nora (1993, p.20) também menciona como “retorno da narrativa” que se pode notar nas mais recentes maneiras de se escrever a história, assinala ele que “bem diferente da narrativa tradicional, fechada sobre si mesma”.
Nassar (2009, p.303) visualiza que a comunicação tem primado pela objetividade e pelas mensagens de perfil quantitativo, notadamente ligada a funcionários, não havendo tempo para dialogar, fantasiar e para contar histórias. Isto é um paradoxo diante da constatação de que a subjetividade organizacional viabiliza a formação de uma cultura do sonho, da participação e da inovação, que são vitais para o atendimento de demandas sociais intangíveis e de legitimidade. Quanto trata de dimensões intangíveis, o pesquisador refere-se à reputação, à credibilidade, à confiança, que determinam a qualidade dos relacionamentos entre a organização, seus públicos e sociedade.
Para Domingos (2008a, online), “o storytellling é uma tentativa de humanização do espaço de interação”. As narrativas tratam de assuntos diversos, como a vida dos grandes empreendimentos, ou mesmo narrativas ficcionais que possam servir para exemplificar um estado de espírito capaz de colocar toda uma empresa em interação comunicativa. O objetivo é formar uma atitude pragmática e viva, nas relações de trabalho, acrescido de forte valor não só intelectual, mas também ficcional. As personagens podem tornar-se suportes vivos de histórias vivas, onde se concretizam e encarnam ideias que, mesmo que complexas, podem se tornar acessíveis a todos por meio de um storytelling. As histórias fazem apelo a metáforas e metonímias, tendo por finalidade elucidar situações e tratar problemáticas complicadas. As metáforas desencadeiam ideias, ajudam a interpretar e ajustar, como meio de interação comunicativa eficaz para entrar em contato com um mundo que está além das palavras – “a vida que não pode ser dita, mas sim vivida” (DOMINGOS, 2008a, online). Não se trata, portanto, de qualquer narrativa de entretenimento, mas sim aquela que tem também o objetivo de formatar pensamentos e veicular significações. Este pesquisador complementa: “são textos narrativos que produzem efeitos diretos nos grupos que as praticam, de modo invididual ou até mesmo global, nas dinâmicas de mudanças, de inovação, ou de clima relacional nas organizações e sociedades em rede. Produtos puros da imaginação, embora sempre baseadas nas experiências com o real” (DOMINGOS, 2008a, online).
Aliás, o debate entre subjetividade e objetividade transformou-se numa oposição entre escrita literária e escrita cientificista. Haveria, segundo analisa Pollak (1992, p.210), de um lado o vazio, o seco, o enfadonho, que seria o discurso científico, ainda por cima reducionista e fechado à pluralidade do real, e de outro a história oral seria uma das possibilidades de reintroduzir nas ciências humanas, depois do período estruturalista, uma escrita não apenas subjetiva, mas sobretudo literária. Nas falas, o sociólogo austríaco identifica três tipos de estilo – cronológico, temático e factual. O predomínio no estilo cronológico está correlacionado com a característica de um grau mínimo de escolarização, no sentido de pensar em si próprio em termos de duração, de continuidade e situar-se em termos de início e fim. Já o estilo temático se liga pouco à cronologia e busca inspiração numa parte específica da trajetória do depoente, que embasa todas as rememorações, sendo uma elaboração mais intelectualizada. O estilo factual, por fim, é um relato completamente desordenado, típico de grau educacional baixíssimo (POLLAK, 1992, p.212).
Referências
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1971.
BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. 2ª.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986a, p.36-49.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. 2ª.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986b, p.197-221.
DOUEK, Marcelo. Planejamento de marca e roteiros de cinema. Meio&Mensagem. São Paulo, n.1367, p.39, 13 jul 2009.
DOMINGOS, Adenil Alfeu. Storytelling e Mídia: a narração de histórias construindo o poder político. In: Encontro da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura, II, 2008, Bauru, SP. Digitalização e Sociedade. Bauru,SP: Unesp, 2008a. Disponível em: <http://www.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/ulepicc2008/anais/2008_Ulepicc_0392-0409.pdf>. Acesso em: 15 abr.2010.
DOMINGOS, Adenil Alfeu. Storytelling: fenômeno da era da liquidez. Signum: Estudos da Linguagem. Londrina: Universidade Estadual de Londrina. v.11, n.1, p.93-109, jul.2008b.
ECHEVERRÍA, Rafael. Ontología del lenguaje. 6a. ed. Santiago, Chile: J.C.Saéz, 2003.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
EWALD, Felipe Grüne. Memória e narrative: Walter Benjamin, nostalgia e movência. Nau Literária. Porto Alegre: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. vol.4, n.2, jul./dez. 2008. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/5994>. Acesso em: 14 mai. 2010.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. Topoi, Rio de Janeiro, dez.2002, p.314-332.
FROCHTENGARTEN, Fernando. A memória oral no mundo contemporâneo. Estudos Avançados, São Paulo: Revista do Instituto de Psicologia da USP, v.19. n.55. p.367-376. set./dez. 2005.
LÉVI-STRAUSS, Claude (Org.). Mito e linguagem social: ensaios de Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.
LUCENA FILHO, Gentil; VILLEGAS, Margarita Maria; OLIVEIRA, Sheila. Histórias de aprendizagem e gestão organizacional: uma abordagem antológica e hermenêutica. Ciência da Informação. Brasília, vol.37, n.2. mar./ago. 2008. Disponível em: <http://revista.ibict.br/index.php/ciinf/article/viewArticle/1063>. Acesso em: 21 mai.2010.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. A história, cativa da memória? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n.34, 1992, p.9-24.
NASSAR, Paulo. História e memória organizacional como interfaces das relações públicas. In: KUNSCH, Margarida M. Krohling (Org.). Relações Públicas - história, teorias e estratégias nas organizações contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2009. p.291-306.
PASSERINI, Luisa. Mitobiografia em história oral. Projeto História, São Paulo: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP, n.10, p.29-40, dez. 1993.
PEREIRA, Andréia; VEIGA, Kátia; RAPOSO, Alberto; FUKS, Hugo; DAVID, Viviane; FILIPPO, Denise. Storytelling imersivo colaborativo: Time2Play no Second Life. Simpósio Brasileiro de Sistemas Colaborativos, VI, 2009. Fortaleza. Anais... Fortaleza: Ed. IEEE-CS. out. 2009. p.99-105. Disponível em: <http://groupware.les.inf.puc-rio.br/groupware/publicacoes/SBSC09_Time2Play_Final1.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2010.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, n.10, p.200-212, 1992.
PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrônicos – memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. Projeto História, São Paulo: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP, n.10, p.41-58, dez. 1993.
TERRA, José Cláudio. Storytelling como ferramenta de gestão. In: Biblioteca Terra Fórum. São Paulo, [s.d.]. Disponível em: <http://www.terraforum.com.br/biblioteca/Documents/Storytelling%20como%20ferramenta%20de%20gest%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 21 mai.2010.
Os artigos aqui apresentados n�o necessariamente refletem a opini�o da Aberje
e seu conte�do � de exclusiva responsabilidade do autor. 1585
Outras colunas de Rodrigo Cogo
14/05/2015 - No caminho de novas narrativas humanizadas
27/02/2015 - A legitimação pela viabilização de múltiplas vozes: aplicando o storytelling organizacional
05/12/2014 - Storytelling como técnica ou processo e seus efeitos na comunicação organizacional: uma entrevista
24/10/2014 - Identidade é o território organizado e assegurado pela memória e pelas narrativas
01/08/2014 - Storytelling em quatro perguntas
O primeiro portal da Comunicação Empresarial Brasileira - Desde 1996
Sobre a Aberje |
Cursos |
Eventos |
Comitês |
Prêmio |
Associe-se |
Diretoria |
Fale conosco
Aberje - Associação Brasileira de Comunicação Empresarial ©1967 Todos os direitos reservados.
Rua Amália de Noronha, 151 - 6º andar - São Paulo/SP - (11) 5627-9090