Memória como recuperação da história vivida
A proposta deste texto é dar continuidade ao conteúdo trazido no artigo de abril de 2011 neste portal; e contribuir para o amadurecimento das reflexões sobre o impacto desta interface na comunicação organizacional
A História busca produzir um conhecimento racional, uma análise crítica através de uma exposição lógica dos acontecimentos e vidas do passado, com prevalência documental. A memória, por sua vez, também é uma “construção do passado, mas pautada em emoções e vivências, ela é flexível e os eventos são lembrados à luz da experiência subseqüente e das necessidades do presente” (FERREIRA, 2002, p.321). É baseada, portanto, nas evocações de pessoas sobre o passado – pessoal e ao mesmo tempo coletivo. Pinto (2001, p.297) traz uma importante contribuição, afirmando que “a memória recupera a história vivida, história como experiência humana de uma temporalidade, e opõe-se à história como campo de produção de conhecimento, espaço de problematização e de crítica. Na operação histórica, o passado é tornado exclusivamente racional, destituído da aura de culto, metamorfoseado em conhecimentos, em representação, em reflexão; na constituição da memória, ao contrário, é possível reincorporar a ele, passado, um grau de sacro, de mito”.
A caracterização mais frequente da memória, segundo Meneses (1992, p.9), é de mecanismo de registro e retenção, depósito de informações, conhecimento e experiências, que também está suscetível a esquecimentos e ocultações. Borges (2007), no conto Funes, o Memorioso, marca o emblema da perda da condição humana pela saturação da memória e pela incapacidade de esquecer e, por conseguinte, de pensar, demonstrando a importância também dos mecanismos de seleção e descarte – que não são negativos em si mesmos. Todos os rastros da História, sejam do progresso ou da decadência, deixam registros na memória. Pinto (2001, p.294) resume muito bem: “tornamo-nos memoriosos e redefinimos, trilhando a fronteira porosa entre História e ficção, o lugar possível da memória. Memória pelos textos, pela constituição poética”. Nora (1993, p.9) refere quase efusivamente a um conceito de memória: “é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações”.
Pode-se definir memória como um conjunto de funções cerebrais que permitem ao homem guardar as mensagens, mas há que se levar em conta a permanente possibilidade de seleção destes conteúdos antes de sua evocação. É de fortes sentimentos e emoções que memórias diversificadas irrompem e invadem a cena pública, buscando reconhecimento, visibilidade e articulação. Em geral, suprem um espaço que a racionalidade história é impotente para exprimir, “atualizando no presente vivências remotas (revisitadas, silenciadas, recalcadas ou esquecidas) que se projetam em relação ao futuro” (SEIXAS, 2001, p.98).
Martin Kohli (apud MENESES, 1992, p.11) diz que a memória de grupos e coletividades se organiza, reorganiza, adquire estrutura e se refaz, num processo constante, de feição adaptativa. Ao contrário da noção de pacote de recordações, memória é um processo permanente de construção e reconstrução (BOSI, 1994, p.7). Para Ferreira (2004, p.98), memória é um elemento constitutivo do sentimento de identidade, tanto coletivo quanto individual, como fruto de um trabalho de construção constantemente negociada e representação de um fenômeno social. Velho (2001, p.11) reforça taxativo, afirmando que “não existe vida social sem memória, a própria possibilidade de interação depende de experiências e expectativas culturalmente compartilhadas”. Para ele, não se trata de um único relato ou história, mas uma composição de discursos e representações das sociedades complexas, com versões que expressam a heterogeneidade dos atores. Por isto, é nesta relação entre a rede de significados e a dimensão da ação dos atores sociais que deve ser caracterizada a importância das memórias (VELHO, 2001, p.11).
Nora (1993, p.14) faz um apanhado muito instigante do que seriam vários tipos de memória. Para este cientista social francês, é preciso ter a consciência clara sobre a memória verdadeira, abrigada no gesto e no hábito, nos ofícios onde se transmitem os saberes do silêncio e do corpo; sobre a memória da impregnação com os saberes reflexos; e a memória transformada por sua passagem em história, por isto voluntária e deliberada, vivida como um dever. O filósofo francês Henri Bergson, professor de Proust, é citado por Nassar (2007, p.40) para dizer que “a imagem-lembrança, que vem espontaneamente à mente quando nossos sentidos esbarram em expressões organizacionais (arquitetura, marca, produto, empregado e outras) é a memória-pura”.
É preciso destacar que o campo da memória, e inclusive da própria comunicação organizacional, nutre-se de uma inspiração rizomática (DELEUZE; GUATTARI, 1995), porque se desenvolve numa diversidade de interfaces. O rizoma é apresentado como multiforma, uma haste subterrânea com ramificações variadas de superfície e com bulbos ou tubérculos, e neste sentido superando a visão de raiz, de ponto único de eclosão. A memória postula justamente a multiplicidade e a convivência de diversos sujeitos, que reconstroem experiências passadas, a luz ou não das intenções do presente. Isto combina imensamente com os princípios desta nova concepção de comportamento e inteligência: “as multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudo multiplicidades arborescentes [...] não têm sujeito nem objeto” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.15). A metáfora do mapa é empregada pelos autores e apresenta sintonia com a memória como algo conectável em todas as direções, desmontável, reversível e suscetível a modificações, visto que, conforme comentam Deleuze e Guattari (1995, p.21), “uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas”. Não combina, portanto, com os sistemas pensados a partir da árvore ou da raiz, porque estes são hierárquicos e comportam centralidades de significância. Assim como a memória, o rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões [...] não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI, p.31) e, nesta perspectiva, ambos têm como tecido a conjunção ‘e’, não excludente.
São raciocínios para (re)pensar a comunicação organizacional, efetivamente como campo mestiço de conhecimento. Com esta concepção, os pesquisadores e profissionais da área só têm a ganhar em densidade de trabalho, tão necessária para entender e operar na complexidade social atual.
Referências
BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.1. São Paulo: 34, 1995.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. Topoi, Rio de Janeiro, dez.2002, p.314-332.
FERREIRA, Marieta de Moraes. Memórias da história. Nossa História. Ano 1. n.8. São Paulo: Vera Cruz/Biblioteca Nacional, jun.2004, p.98.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. A história, cativa da memória? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n.34, 1992, p.9-24.
NASSAR, Paulo. Memória e esquecimento. Revista Imprensa. São Paulo, n.222. p.40, abr. 2007.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. Yara Khoury. Projeto História, São Paulo: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP, n.10, p.7-28, dez. 1993.
PINTO, Júlio Pimentel. Todos os passados criados pela memória. In: LEIBING, Annette; BENNINGHOFF-LÜHL, Sibylle (Orgs.). Devorando o tempo: Brasil, o país sem memória. São Paulo: Mandarim, 2001. p.293-300.
SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terra de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.; NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (res)sentimento. Campinas: Unicamp, 2001.
VELHO, Gilberto. Memória, cultura e sociedade. In: LEIBING, Annette; BENNINGHOFF-LÜHL, Sibylle (Orgs.). Devorando o tempo: Brasil, o país sem memória. São Paulo: Mandarim, 2001. p.11.
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