Contribuições da História e da Memória para a comunicação organizacional
Para compreender os estudos de memória, e fazer uma incursão mais específica sobre memória no composto da comunicação organizacional, é interessante iniciar por uma reflexão sobre a formação do conceito e do papel da história desde a Antigüidade clássica, com Heródoto até historiadores e filósofos mais recentes. Ao longo do tempo, a busca incessante do historiador foi pela objetividade diante da ambigüidade da história. A história seria, na verdade, o reino do inexato, conforme manifesta Le Goff (2003, p.95). Isso faz com que se compreendam algumas incertezas do historiador, no sentido de querer ser objetivo e não poder sê-lo, querer fazer reviver e só poder reconstruir. No geral, a história parece querer tornar as coisas contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem que reconstituir a distância e a profundidade da lonjura histórica. Este autor trata da história vivida das sociedades humanas e do esforço científico para descrevê-la e interpretá-la, como dois pólos entre os quais se resume o próprio conceito de história: ao tempo natural e cíclico das estações e do clima se justapõe, e até se contrapõe, a percepção de duração registrada pelos homens; e a memória pessoal e coletiva fica submetida ao calendário e ao relógio, instrumentos de domesticação e de domínio do tempo. Nessa contínua defasagem, insinuam-se a ideia de história, ambígua e mutável, e a relação entre o passado e o presente. É como assinala Chesneaux (1995, p.67), quando afirma que “os fatos históricos são contraditórios como o próprio decorrer da história; eles são percebidos diferentemente (porque diferentemente ocultados) segundo o tempo, o lugar, a classe, a ideologia [...] por outro lado são suscetíveis apenas de aproximações progressivas, sempre mais próximas do real, nunca acabadas nem completas”.
Castells (2009, p.63) analisa as mudanças relativas ao conceito de tempo. O tempo biológico é definido por uma sequência programada de ciclos vitais da natureza, e o tempo social é modelado ao longo da história, no que ele denomina de tempo burocrático – a organização do tempo nas instituições e na vida cotidiana. Já a partir da era industrial, o pesquisador identifica o tempo do relógio ou, remetendo à tradição foucaultiana, o tempo disciplinativo, que busca atribuir tarefas e ordens a cada momento da vida. Mas isto tudo seria abalado na chamada “sociedade em rede”, quando “a relação com o tempo vem definida pelo uso de tecnologias da informação e da comunicação em um incessante esforço para aniquilar o tempo negando sua sequenciação” (CASTELLS, 2009, p.64, tradução nossa). É o que comenta Safra (apud MIZIARA; MAHFOUD, 2006, p.102), ao dizer que “o homem se encontra na fragilidade do entre: entre o dito e o indizível, entre o desvelar e o ocultar, entre o singular e o múltiplo, entre o encontro e a solidão, entre o claro e o escuro, entre o finito e o infinito, entre o viver e o morrer”.
Pollak (1992, p.209) acredita que a história está se transformando em histórias, parciais e plurais, até mesmo sob o aspecto da cronologia. As cronologias também estariam plurais, em função de seu modo de construção, no sentido do enquadramento da memória, e também em função de uma vivência diferenciada das realidades.
O postulado é de que outros temas deviam servir de interesse ao historiador, novos campos de pesquisas deveriam ser abertos, graças à impulsão da arqueologia, que não se limitassem mais às visitas aos arquivos estatais atrás das decisões dos governantes, dos reis ou dos presidentes. Uma outra história deveria então nascer, abarcando as mentalidades das épocas passadas, a geografia, o clima, os costumes, a vida cotidiana. Para Totini e Gagete (2004, p.114-115), aproximando o tema do universo organizacional, é preciso valorizar os historiadores da ‘nova história’, que incorporam novos temas, novos protagonistas, novos ângulos para a história empresarial e trazem para este campo a dimensão do simbólico, revisando a visão ortodoxa de Alfred Chandler, pesquisador da Harvard Business School notabilizado pelas biografias empresariais, relatórios anuais, livros e revistas de negócios.
O aprofundamento das discussões acerca das relações entre passado e presente na história, e o rompimento com a ideia que identificava objeto histórico e passado, definido como alto totalmente morto e incapaz de ser reinterpretado em função do presente, abriram caminhos para o estudo da história do século XX (FERREIRA, 2000, p.121). A história dos fatos recentes, por vezes, também é vista como problemática, muito embora na Antiguidade clássica, ao contrário, ela era o foco central da preocupação de historiadores. Ferreira (2000, p.111) relata que, para Heródoto e Tucídides, a história era um repositório de exemplos que deveriam ser preservados, e o trabalho do historiador era expor os fatos recentes atestados por testemunhos diretos, inclusive de personagens comuns, afastando-se da noção de que, para traços serem interpretados, deveriam ter sido antes arquivados. A ausência de um passado conhecido e reconhecido pode também ser fonte de grandes problemas de mentalidade ou identidade coletivas. Os hábitos de periodização histórica levam, assim, a privilegiar as revoluções, as guerras, as mudanças de regime político, a história dos acontecimentos.
Lipovetsky (2004) critica as concepções simplistas a respeito do real e de temporalidades. Na era do ‘hiper’, que se caracteriza pelo hiperconsumo, pela hipermodernidade e pelo hipernarcisismo, observa-se um volume fenomenal de capital em circulação. A sociedade de consumo exibe o excesso, uma multiplicação desordenada de mercadorias. A vertiginosa transformação da tecnologia influencia a vida e a morte, e até mesmo a procriação. A ênfase está na obrigação do movimento, na hipermudança, sem o peso de qualquer utopia, tudo ditado pelo imperativo da eficiência. Quanto mais se tem visão do futuro, mais ele se presta à invenção e ao simulacro da imortalidade. A crença de Augé (2008, p.33) é semelhante, no que chama de “supermodernidade”, caracterizada pelas figuras de excesso: superabundância factual, superabundância espacial e individualização das referências, correspondendo a transformações das categorias de tempo, espaço e indivíduo. A renovação da categoria tempo se concretiza no aceleramento da história através do excesso de informações e da interdependência do mundo. A crença tecnológica celebrada na atualidade leva o homem a viver um tempo dotado de apenas duas dimensões: o presente das invenções e o futuro das conquistas, sempre carregando olhares enviesados em relação ao passado. Pinto (2001, p.294), defendendo uma “poética da memória”, fala na preparação de uma linguagem adequada à fixação dos referenciais passados e na articulação entre as muitas temporalidades de que se compõe a memória.
MEMÓRIA ORGANIZACIONAL - Worcman (2004, p.23-24) defende um modelo de memória na empresa como agente catalisador no apoio a negócios, na coesão de grupo e elemento de responsabilidade social e histórica. São experiências acumuladas e transformadas em conhecimento. Afinal, “a história de uma empresa não deve ser pensada apenas como resgate do passado, mas como marco referencial a partir do qual as pessoas redescobrem valores e experiências, reforçam vínculos presentes, criam empatia com a trajetória da organização” (WORCMAN, 2004, p.23).
Partindo do conceito que memória organizacional é uma seleção subjetiva daquilo que é o passado, com presença afirmada no presente e influência no futuro da empresa ou instituição (NASSAR, 2009, p.295), fica claro o raciocínio que conduz à compreensão da pertinência desta área como parte indissociável da comunicação nas organizações, sistemas abertos cada vez mais complexos. E ainda, da memória como contribuinte efetiva do enfoque das interações informativas e relacionais, sobremaneira na valoração de ativos intangíveis e nos postulados e atributos de marcas potencializados a partir de um sentido histórico lastreador. A percepção e a narrativa consequente vinda de públicos diversos sobre organizações estão impregnadas de sensações dadas por um contexto econômico e social, e certamente podem ser fortalecidas mediante o resgate histórico destes agentes. Para bem além das decisões de posicionamento mercadológico, cuja exigência de foco também acaba por vezes desvirtuando o que seria a essência de surgimento e conduta da organização, o que se chama à atenção é a possibilidade diferenciadora de utilização da história lembrada como recurso de atratividade e genuinidade.
Como assinala Maricato (2006, p.126), “ao compreender a vida de uma organização disposta na linha do tempo, podemos distinguir quão importantes foram e são os fatos históricos, as reações, as linhas de comando e o perfil que ela vai incorporando, traduzindo-se na própria maneira de ser da organização”. Neste panorama, surgem alternativas para a governança das organizações, onde a gestão pela confiança a partir da memória organizacional é um dos mecanismos elencados. O sentido da memória para a vida e as emoções humanas tem inspirado as organizações e suas estratégias, ações e comportamentos. Afinal, como sentencia Nassar (2006, online), “no contexto atual para as empresas e instituições, [...] a memória é reputação”. Analisa ele que a força da experiência passada está presente construindo ou demolindo empresas e carreiras, e a memória registrada em documentos, na cabeça das pessoas e aquelas lembranças contadas por interagentes é o que consolida a reputação. Neste ínterim, é fundamental equilibrar os aspectos econômicos, sociais e psicológicos de suas atividades produtivas e a força da história e da memória como elementos da definição da identidade, imagem e reputação. Diz Nassar (2007, online) que “a partir das expressões culturais de uma empresa, as sociedades e mercados se reconhecem para o bem e para o mal em marcas, produtos, valores e atitudes. Ao escavar suas memórias, na linha do tempo de sua trajetória, as empresas talvez conquistem o reconhecimento de suas responsabilidades históricas em relação ao estado atual do mundo”.
Maricato (2006, p.128) não tem dúvida que o conhecimento da história da empresa passa a ser um novo critério em razão do seu potencial em agregar valor, ajudando inclusive a compreender sobre os valores provenientes da fundação e como interferem na forma como a organização toma decisões. Segundo Simone Loureiro, “participar da história da empresa dá ao funcionário o sentimento de continente, de pertencer a uma organização num mundo de mudanças. Nessa aceleração do tempo histórico, a memória é o registro da cultura, garantindo continuidade e valorização” (apud DAMANTE, 2004, p.30).
Parece não haver dúvida de que história e memória podem ser poderosas ferramentas para a construção de marca, imagem e consolidação da cultura e da comunicação organizacionais, fortes geradoras de confiança. As organizações criam as suas histórias e referências e “forjam os seus heróis, mitos, ritos e rituais. E as organizações que sistematizam o registro desses elementos ligados ao simbólico e as comunicam para todos os seus públicos têm as suas identidades fortalecidas, missões protegidas e destinos assegurados” (NASSAR, 1999, p.11).
As histórias em circulação nas organizações procuram plausibilidade para as experiências, referindo-se a uma tentativa de transformar o inesperado em esperado, a busca da criação de uma trama, de uma seqüência socialmente aceitável das experiências vivenciadas na direção da produção de sentido das ações. Ricas em detalhes, as narrações possibilitam o resgate das opiniões, sentimentos e intenções por trás das ações realizadas.
Mas esta profundidade e complexidade parecem passar despercebidas num cotidiano profissional de comunicadores organizacionais e relações públicas ainda absortos no atendimento pontual e sequencial de demandas de setores, o que dificulta a reflexão sobre a extensão dos atos retóricos em ambiente de trabalho e/ou em nome de empreendimentos e negociações multipúblicos. A visão mecânica ou instrumental ainda parece predominar na área, como se estivesse tratando do simples manuseio, mais ou menos estratégico, de produção e distribuição de mídias de contato. Negligencia-se a transversalidade dos conhecimentos, como no caso aqui exposto sobre História e Memória. Na verdade, numa sociedade cada vez mais em rede, consciente do poder da inteligência coletiva e da potencialidade da internet no descentramento da fonte emissora, cria-se uma outra ordem de parâmetros para conformar a reputação: com pessoas alterando de maneira significativa o foco de suas atribuições de confiabilidade, suprimindo ou atenuando a pretensa influência das grandes corporações, dos governos, das igrejas ou da mídia broadcast.
REFERÊNCIAS
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CASTELLS, Manuel. Comunicación y poder. Trad. María Hernández. Madrid: Aliança Editorial, 2009.
CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábua rasa do passado? Sobre a história e os historiadores. Trad. Marcos da Silva. São Paulo: Ática, 1995.
DAMANTE, Nara. Conhece-te a ti mesmo. Comunicação Empresarial. São Paulo: Aberje. n.52, p.28-35. 3.trim. 2004.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, n.3, mai./jun.2000. p.111-124.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005.
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NASSAR, Paulo. Entre a produção e o prazer, a história. Terra. 21 jul. 2007. Disponível em: <http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1774185-EI6786,00-Entre+a+producao+e+o+prazer+a+historia.html>. Acesso em: 22 julho 2009.
NASSAR, Paulo. História e memória organizacional como interfaces das relações públicas. In: KUNSCH, Margarida M. Krohling (Org.). Relações Públicas - história, teorias e estratégias nas organizações contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2009. p.291-306.
PINTO, Júlio Pimentel. Todos os passados criados pela memória. In: LEIBING, Annette; BENNINGHOFF-LÜHL, Sibylle (Orgs.). Devorando o tempo: Brasil, o país sem memória. São Paulo: Mandarim, 2001. p.293-300.
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Os artigos aqui apresentados n�o necessariamente refletem a opini�o da Aberje
e seu conte�do � de exclusiva responsabilidade do autor. 1922
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