Entre o passado, o presente e o futuro: inspiração nos caminhos da memória
Para compreender os estudos de memória, e fazer uma incursão mais específica sobre memória organizacional, é interessante perceber que, para muitos pesquisadores, a história seria, na verdade, o reino do inexato, conforme manifesta Le Goff (2003). No geral, a história parece querer tornar as coisas contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem que reconstituir a distância e a profundidade da lonjura histórica. Este autor trata da história vivida das sociedades humanas e do esforço científico para descrevê-la e interpretá-la, como dois pólos entre os quais se resume o próprio conceito de história. Ao tempo natural e cíclico das estações e do clima se justapõe, e até se contrapõe, a percepção de duração registrada pelos homens; e a memória pessoal e coletiva fica submetida ao calendário e ao relógio, instrumentos de domesticação e de domínio do tempo. Nessa contínua defasagem, insinuam-se a ideia de história, ambígua e mutável, e a relação entre o passado e o presente.
É como assinala Chesneaux (1995, p.67), quando afirma que “os fatos históricos são contraditórios como o próprio decorrer da história; eles são percebidos diferentemente (porque diferentemente ocultados) segundo o tempo, o lugar, a classe, a ideologia [...] por outro lado são suscetíveis apenas de aproximações progressivas, sempre mais próximas do real, nunca acabadas nem completas”. Neste mesmo sentido, Pollak (1992, p.209) acredita que a história está se transformando em histórias, parciais e plurais, até mesmo sob o aspecto da cronologia. As cronologias também estariam plurais, em função de seu modo de construção, no sentido do enquadramento da memória, e também em função de uma vivência diferenciada das realidades.
Na França, desde os finais dos anos vinte do século XX, crescia em influência a chamada École des Annales, que buscava afastar a historiografia da sua dependência para com a política, como era o gosto da corrente positivista. O postulado é de que outros temas deviam servir de interesse, que não se limitassem mais às visitas aos arquivos estatais atrás das decisões dos governantes, dos reis ou dos presidentes. Uma outra história deveria então nascer, abarcando as mentalidades das épocas passadas, a geografia, o clima, os costumes, a vida cotidiana. Para Gagete e Totini (2004, p.114-115), aproximando o tema do universo organizacional, é preciso valorizar os historiadores da ‘nova história’, que incorporam novos temas, novos protagonistas, novos ângulos para a história empresarial e trazem para este campo a dimensão do simbólico, revisando a visão ortodoxa de Alfred Chandler, pesquisador da Harvard Business School notabilizado pelas biografias empresariais, relatórios anuais, livros e revistas de negócios.
Marc Bloch (apud LE GOFF, 2003, p.23) não gostava da definição “a história é a ciência do passado” e considerava absurda a própria ideia de que o passado, enquanto tal possa ser objeto da ciência. Ele propunha que se definisse a história como a ciência dos homens no tempo e pensava nas relações que o passado e o presente entretecem ao longo da história e considerava que a história não só deve permitir compreender o ‘presente pelo passado’ atitude tradicional , mas também compreender o ‘passado pelo presente’. Confirmando resolutamente o caráter científico e abstrato do trabalho histórico, não aceitava que fosse creditado exclusivamente à cronologia. Muitas vezes, seria vantajoso ler a história ao contrário. Afinal, “o passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da história” (LE GOFF, 2003, p.24). À relação essencial presente-passado, ele pontua o acréscimo do horizonte do futuro.
Ferreira (2000, p.111) relata que, para Heródoto e Tucídides, a história era um repositório de exemplos que deveriam ser preservados, e o trabalho do historiador era expor os fatos recentes atestados por testemunhos diretos, inclusive de personagens comuns, afastando-se da noção de que, para traços serem interpretados, deveriam ter sido antes arquivados. É bom atentar que “uma organização voltada somente para a produtividade desqualifica e empobrece as experiências e vivências de seus membros” (NASSAR, 2008, p.131). Neste ambiente, a supremacia do exato e do objetivo enfraquece as relações simbólicas. Em geral, a atuação do antagonismo é constituída pela atitude dos indivíduos, das sociedades e das épocas perante o seu passado.
A ausência de um passado conhecido e reconhecido pode também ser fonte de grandes problemas de mentalidade ou identidade coletivas. Os hábitos de periodização histórica levam, assim, a privilegiar as revoluções, as guerras, as mudanças de regime político, a história dos acontecimentos. A distinção passado-presente de que se ocupa é a que existe na consciência coletiva, em especial na consciência social histórica, tornando-se necessário evocá-la sob outras perspectivas que ultrapassam a memória coletiva, acrescendo a dimensão do futuro. Quem apresenta uma definição instigante é Santo Agostinho (2001, p.305): “o futuro e o passado não existem [...] não é exato falar de três tempos – passado, presente e futuro [...] os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes e o presente dos fatos futuros [...] O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera”.
MESTRADO - Compreender o tempo é essencialmente dar provas de reversibilidade, afinal o horizonte temporal das pessoas consegue desenvolver-se muito além das dimensões da própria vida, como no caso da fusão entre a história da infância e das primeiras recordações entremeada com a história das recordações dos pais. Em geral, diz-se que o comportamento normal é um equilíbrio entre a consciência do passado, do presente e do futuro, com algum predomínio da polarização para o futuro, temido e desejado. Este é parte do embasamento de meu estudo atual no mestrado da USP.
Compartilho estas ideias neste espaço da Aberje, por aqui ser mesmo um celeiro de importantes intercâmbios. Você teria alguma dica pra mim?
REFERÊNCIAS
CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábua rasa do passado? Sobre a história e os historiadores. Trad. Marcos da Silva. São Paulo: Ática, 1995.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, n.3, mai./jun.2000. p.111-124.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
NASSAR, Paulo. Relações Públicas na construção da responsabilidade histórica e no resgate da memória institucional das organizações. 2.ed. São Caetano do Sul, SP: Difusão, 2008.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, n.10, p.200-212, 1992.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad. Arnaldo do Espírito Santo. Lisboa: Imprensa Nacional, 2001.
TOTINI, Beth; GAGETE, Élida. Memória empresarial, uma análise da sua evolução. In: NASSAR, Paulo (Org.). Memória de empresa: história e comunicação de mãos dadas, a construir o futuro das organizações. São Paulo: Aberje, 2004. p. 113-126.
Os artigos aqui apresentados n�o necessariamente refletem a opini�o da Aberje
e seu conte�do � de exclusiva responsabilidade do autor. 3178
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