Revisitando o conceito de públicos pela perspectiva do acontecimento
As discussões sobre o conceito de públicos estão no cerne das reflexões da comunicação organizacional e das relações públicas como o agrupamento espontâneo de pessoas e/ou grupos sociais organizados que, frente a uma controvérsia, trava amplo debate para uma atitude comum. Na literatura da área e no mercado, o que comumente se vê é uma classificação geográfica dos públicos, por contiguidade ou proximidade física[1] (entre interno, externo e misto) sempre em relação à organização, que assume a centralidade da análise.
Autores que trabalham com comunicação voltada para o terceiro setor ou para as relações públicas comunitárias têm contribuído para as discussões ao voltar seus estudos para os processos de mobilização social, entendidos como precisamente o processo de formação e movimentação de públicos que, como tal, não se restringe à esfera mercadológica, mas se refunda numa matriz sociológica (públicos como forma de sociabilidade). Essa perspectiva nos desafia a repensar os pressupostos teóricos privilegiando não apenas um arcabouço do mundo dos negócios, mas o social do qual ele faz parte e que permanentemente o provoca.
Avançando nessa perspectiva, a noção de acontecimento tem sido também acionada para fazer frente às perspectivas que tratam os públicos como entidades estrategicamente concebidas pelas organizações (e, portanto, reflexos de acontecimentos que lhes seriam externos). Nessa linha, faz-se necessário refletir sobre o caráter de acontecimento dos públicos, a partir da atividade de mapeamento de públicos, considerada fundamental na prática de Relações Públicas (pressupondo que as organizações têm o poder de agenciamento de seus públicos) e do público como forma de ação coletiva, a partir das discussões sobre os movimentos sociais ou os públicos políticos.
A natureza acontecional do público, na primeira visada, compreenderia o esforço deliberado e estratégico de relacionamento organizacional com determinado agrupamento de indivíduos, delineados segundo certas categorias comuns (ou distintivas), pela organização. Para efeitos práticos, normalmente públicos são tomados como sinônimo de grupos, mas estes “serão verdadeiramente públicos somente após o efetivo trabalho de Relações Públicas” (FORTES, 2003, p.63). Ou seja, a delimitação de determinados grupos como públicos é aqui entendida como o primeiro passo de uma proposta de interação que, no trabalho de relações públicas (em seus planos e estratégias de comunicação organizacional), conformará uma série de microacontecimentos em que os indivíduos aceitarão (ou não) as convocações organizacionais, negociarão sentidos, instaurarão outros, engajando-se (ou não) nas interações. Enfim, trata-se de uma conformação de públicos organizacionais, na medida em que são propostas de agenciamento da organização, colocando-a como o referencial a partir de onde orbitarão as interações desejadas. Públicos, nessa perspectiva, são grupos mapeados pelas organizações, de modo a fornecer-lhes uma identidade que, para efeitos práticos, lhes serve (às organizações) para direcionar seus esforços estratégicos.
Públicos como forma e como modalidade de experiência
No entanto, do embate entre as intencionalidades organizacionais, a dos sujeitos que compõem os públicos e o contexto sócio-político-econômico-cultural que integram, delineiam-se futuros indeterminados que vão sendo construídos na complexa dinâmica de interações entre esses interlocutores, seus discursos e o próprio contexto – e nenhuma dessas instâncias pode ser controlada, portanto, por qualquer dos atores. Por isso, é possível também falar da “formação dos públicos a partir dos vínculos de sociabilidade, a qualidade e a dinâmica desses vínculos e as tensões e relações de poder que constituem tais vínculos no interior de dispositivos hierarquizados” (HENRIQUES; MARQUES, 2014, p.35). Ou seja, falar de públicos como forma e como modalidade de experiência.
Pensar os públicos como forma implica refletir sobre de que tipo seria ou, dito de outro modo, o que une os sujeitos e como. Para Quéré (2003), é a experiência sofrida junto, a experiência do acontecimento, o suportar junto, que cria certa forma de laço entre os sujeitos. Porém, ao considerar o público como forma, admitimos que, enquanto tal, ele somente pode ser apreendido por um esforço de reflexão, vinculado a certos quadros de sentido e contextos institucionais. Já como modalidade de experiência, uma ação coletiva, o autor adota uma concepção adverbial do sujeito da ação para explicar a estrutura formal do público. Ele explica que, para uma semântica adverbial da ação, o que importa numa frase é o verbo, já que é ele quem determina sua estrutura, define lugares a serem preenchidos e as relações que os unem. Mas o autor faz questão de enfatizar que o que é coletivo é a ação, não o sujeito, já que, embora sejam sempre indivíduos que agem, eles não agem enquanto indivíduos ou sujeitos autônomos, mas conformados por um estatuto determinado, relativo a uma estrutura de atividade ou a um sistema que lhe é associado.
O que o autor nos convoca a refletir, com essa provocação e já do ponto de vista da comunicação organizacional, é que temos como objeto dois coletivos, organizações e públicos, que se afetam mutuamente, mas que têm algo completamente diferente, embora complementar, a realizar e a suportar. E que o foco não deve estar nos sujeitos como coletivos, mas na sua ação, na maneira como eles se constituem, agem e suportam juntos um acontecimento – e que não é a mesma, de um lado ou de outro. O acontecimento emerge assim como um lugar possível (e muito promissor) para pensar a relação entre organização e públicos, para além de um ou outro lado, mas preocupando-se com o desenrolar dos eventos que os afetam e, assim, com a forma assumida por eles ao se engajarem (ou não) nas possibilidades construídas ao sentir junto. “Em resumo é a ‘partir da relação de pertencer ao jogo’ que o jogador, assim como o público deve ser pensado. Este ‘pertencimento’ é diferenciado e as modalidades do agir e do “sofrer junto”, logo aquelas modalidades não são as mesmas de um lado e de outro” (QUÉRÉ, 2003, p.130. Tradução livre).
Para as organizações, pesquisadores e profissionais de comunicação organizacional e relações públicas, isso implica compreender públicos como configuração de papéis que se agenciam uns aos outros, a partir de interações que formam e transformam, organizam e desorganizam sujeitos e realidades sociais em acontecimentos. Uma perspectiva que nos parece extremamente promissora aos interessados na reflexão e na prática da comunicação organizacional estratégica por um viés relacional (e não meramente instrumental), com todas as implicações teóricas e metodológicas que tal desafio nos impõe.
Referências bibliográficas
FORTES, Waldyr Gutierrez. Relações Públicas: processo, funções, tecnologia e estratégias. 2ª Ed. São Paulo: Summus, 2003.
HENRIQUES, Márcio Simeone; MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro. Grisorg - Interações em práticas e processos organizacionais. In: FRANÇA, Vera Veiga; MARTINS, Bruno Guimarães; MENDES, André Melo (orgs.). Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (GRIS): Trajetória, conceitos e pesquisa em comunicação. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2014, p. 34-42.
QUÉRÉ, Louis. Le public comme forme et comme modalité d’expérience. In: CEFAI, Daniel; PASQUIER, Dominique. Les sens du public. PUF, CURAPP, 2003, p.113-134.
*Fábia Pereira Lima é professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa “Comunicação no Contexto das Organizações: aspectos teórico-conceituais” – CNPq/PUC-Minas. E-mail: fabialima@ufmg.br.
Ao receber o convite da Aberje para assumir mensalmente esta coluna no site, propus a participação do Grupo de Pesquisa, “Comunicação no contexto organizacional: aspectos teóricos conceituais”, PUC-Minas/CNPq. Publicamos mensalmente pequenos artigos sobre temas relacionados à comunicação organizacional. Esperamos opiniões de nossos leitores.
[1] Há de se registrar que, na prática de muitas organizações, especialmente de grande porte, há um avanço significativo nos modelos de mapeamento, classificação e análise em outras bases também, que não integram nosso escopo de observação.
Os artigos aqui apresentados n�o necessariamente refletem a opini�o da Aberje
e seu conte�do � de exclusiva responsabilidade do autor. 1505
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