Sobre tempos e irrealidades
“Pela onda luminosa leva o tempo de um raio, tempo que levava Rosa pra arrumar o balaio quando via que o balaio ia escorregar”. A música do Gilberto Gil é velha, mas o tema não poderia ser mais atual. Um tempo em que se vive a cultura do rapidinho, em que tudo é para ontem e que os fins de semana são feitos para se trabalhar. O melhor termo para definir essa cultura estressada e impaciente é utilizado pelas máquinas: o tal “tempo real”, que simboliza o instantâneo, o tudo-ao-mesmo-tempo-agora.
Só que não há nada verdadeiramente real em tempo real, e certamente nada humano nele. Tempo real é tempo imediato, sem pausas nem espera, em que tudo acontece num estalar de dedos. Ou antes.
O que pensaria um indivíduo do século 19, mais ignorante, atrasado e insalubre do que o Homem do Futuro, a respeito de listas de pendências e afazeres com mais de vinte itens, boa parte deles em diversos níveis de urgência, cuja realização costuma ocupar o tempo de várias refeições e noites de sono? Cuja sobrecarga cognitiva, onipresente e histérica, é travestida de mídia, computadores, smartphones, tablets e videogames. Sua potência é tamanha que, quando ausente, a sensação de vazio que deixa é enorme, a ponto de ser confundida com síndrome de abstinência.
Prega-se a multitarefa em nome de uma maior conexão com o mundo, quando são exatamente a demora e a espera que nos aproximam da realidade. Esperar por um prato pode ser um bom motivo para papear, como esperar pela conta ou por um cafezinho. Ou olhar, distraído, pela janela enquanto o avião não chega a seu destino. Citando outro trecho da mesma música: “de jangada leva uma eternidade / de saveiro leva uma encarnação / de avião é o tempo de uma saudade...”
O contato entre as pessoas toma tempo, e nesse tempo não é só informação pura e simples que se troca. Ele é tremendamente valioso, não perdido. Os papos de boteco, as festas, conversas pelo telefone, livros lidos, todo o processo educativo, tudo isso é muito rico. As demoras e as pausas são imprevisíveis no mundo de troca de informação. São o tempo no qual a vida acontece, e, através do qual, se trocam outras experiências, sensoriais, afetivas, sinestésicas , intangíveis e enriquecedoras. Deveriam até ser comemoradas.
O contrário, no entanto, é corriqueiro. No dia-a-dia das grandes cidades enormes barbaridades são cometidas no trânsito em nome de uma incurável ansiedade. Sem falar do desespero quando o celular não funciona, a irritação que surge quando não se consegue atingir um padrão ideal - de beleza, de físico, de inteligência, de eficiência. Ao igualar o real ao eficiente, perpetuamos uma idéia positivista em que a aceleração (progresso) é o principal objetivo da vida como um todo (ordem) e, assim, minimizamos o valor do contato humano.
É engraçado ver como as mesmas pessoas que cultivam a “eficiência” do tempo real se apaixonam por cidades pequenas e reclamam por uma melhor qualidade de vida. Ora, por que esse tempo não-instantâneo não é percebido como pausa para a reflexão?
Plantas para crescer levam tempo. Flores são bonitas porque são efêmeras e demandam cuidado. O pôr-do-sol dura poucos minutos e só aparece uma vez por dia. E é muito mais bonito que o céu inteiro cor de laranja, como acontece algumas vezes em cidades poluídas.
Ao sobrevoarmos as paisagens informativas digitais com a velocidade de um caça supersônico temos a impressão de que a cultura se enriquece, quando o que acontece é exatamente o contrário: nos tornamos depósitos de dados e citações impensadas, não refletidas. Ao entrarmos em uma corrida frenética em busca de informação abandonamos o tempo e nos distanciamos cada vez mais da experiência. Não me parece muito lógico.
Isso dá o que pensar. Pois no fundo nada do que se vê ao redor é real, a não ser a nossa disposição a aceitá-lo. Tudo é derivado da percepção, inclusive as interfaces, os computadores, todas as três dimensões, o amor, a beleza. Há quase quinhentos anos Shakespeare já previra que, como o tecido imaterial dessa visão, as torres arranha-céus, os palácios maravilhosos, os templos solenes, o grande globo em si e tudo a que ele pertence, se dissolviria e não deixaria rastros. Como ele definiu, nós somos a matéria do que os sonhos são feitos. Pena que nossa frágil vida é consumida pela interface.
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