Nem História, nem Estória
O recente caso da marca de picolés Diletto, cuja campanha de marketing foi punida pelo Conselho de Ética do Conar (Conselho de Autorregulamentação Publicitária) por apresentar uma história inverídica da origem de seus produtos, acendeu uma luz sobre o correto entendimento do storytelling – uma das práticas que estão no cerne da convergência entre as disciplinas da Comunicação e do Marketing.
O Conar entendeu que a Diletto não foi honesta com seus consumidores ao contar em seu material publicitário, inclusive no website, que seus picolés gourmet teriam sido criados em 1922, no norte da Itália, por Vittorio Scabin, avô de um dos sócios da empresa, Leandro Scabin.
A narrativa, que todos acreditaram ser verdadeira, por ter sido, inclusive, repetida pelos líderes da empresa em entrevistas jornalísticas, era uma ficção elaborada com sofisticados detalhes, como o fato de os picolés serem feitos de neve e ainda de o nono Vittorio ter vindo ao Brasil em decorrência da Segunda Guerra Mundial.
A Diletto argumentou, num primeiro momento, que Vittorio era o alterego de seu Antônio, avô de um dos sócios, e que embora a história fosse fictícia, inspirava-se em “valores reais” da marca.
Scabin acabou admitindo em entrevista à revista EXAME ter ido um tanto longe no “causo” do avô Vittorio. E a marca aceitou a recomendação do Conar de alterar seus materiais promocionais, “de forma que fique explícito no material publicitário (…) que a história sobre a origem do sorvete é uma fantasia, assim devendo ser entendida pelo consumidor.”
A face mais visível do imbróglio Diletto é o fato de a marca ter negado a seus consumidores o direito de saber a diferença entre sua História e sua Estória, entendida aqui a “História” como a narrativa dos fatos reais e como ”Estória” a narrativa de fatos criados - ficção.
A base do iceberg, porém, é o fato de a marca ter se apropriado de forma equivocada da prática do storytelling, tão disputada no mundo integrado de plataformas e tecnologias que vivemos hoje.
Ocorre que o storytelling, com sua capacidade imensa de engajar consumidores em uma “conversa” especial e inspiradora, é um legado das Relações Públicas. Portanto, tradicionalmente, de um campo em que a “História” prevalence sobre a “Estória”.
Não que a “História” não mereça o tratamento estético e sensacional da publicidade, mas apenas porque trata da verdade – ainda que eventualmente de uma verdade provocada por ações de engajamento que resultem, ao fim e ao cabo, em uma experiência vivida, muitas vezes, pelo próprio consumidor. Ou que não deva ser contada, conforme o conceito original do storytelling, em diversas plataformas, como um conto que vira livro, filme, videogame, aplicativo.
E não que não deva a publicidade usar seu incrível talento narrativo para contar uma história verdadeira. Apenas que é necessário “separar o joio do trigo”, como ordenou o Conar.
Excluídos os julgamentos, abre-se aqui uma enorme oportunidade de entender por que o storytelling tem sido cada vez mais importante nas estratégias das marcas.
Christopher Graves, Chairman mundial da Ogilvy PR, a unidade de Relações Públicas e Comunicação Corporativa do Grupo Ogilvy, dedicou boa parte de seu tempo nos últimos anos a entender o fascínio provocado pelo storytelling e por que essa prática é tão útil para engajar consumidores.
Entre outros, Graves apontou os estudos do neurocientista Antonio Damásio, que desbancou a velha teoria de que é preciso “manter a cabeça fria para tomar decisões.”
Na direção contrária, com base na observação de dezenas de pacientes clínicos da neurologia e de um profundo estudo da anatomia cerebral, Damásio aponta as emoções como uma das reações humanas mais importantes na tomada de decisões (afinal, o medo nos ensina a lidar com os perigos) e que a falta delas pode até aniquilar o mais cartesiano dos pensamentos.
Até aí, pouca novidade, principalmente para a publicidade, que vive de despertar emoções e assim influenciar as decisões dos consumidores. Novo é o consumidor, que quer a mesma emoção com mais verdade. Daí o valor do storytelling, capaz de narrar de um jeito espetacular: nem História, nem Estória.
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