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COLUNAS


Karen Worcman


Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense/RJ, com mestrado em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/RJ. Fundadora do Museu da Pessoa, um museu virtual de histórias de vida, fundado em 1991. É fellow da Ashoka Empreendedores Sociais desde 1999, instituição que identifica e apoia globalmente projetos de ação inovadora e de amplo impacto social em todo o mundo, como o Museu da Pessoa. Desde 2004, Karen também é membro do Global Fellowship Team da Ashoka, com foco em estratégias de ampliação do impacto social da organização por meio do fortalecimento da rede de fellows. É também parte do board do Program Committee for Museums and the Web, do board do Portal Ourmedia.org e dos Conselhos das Organizações Observatório da Imprensa e do Instituto Avisa Lá.

Para acalmar os ânimos e olhar o copo meio cheio

              Publicado em 04/11/2014

A sensação que tenho do ano de 2014 no Brasil é de uma luta de boxe. Começamos com as manifestações pré-Copa, depois a Copa, depois a lavada na opa, depois as eleições. E aí, respiramos e pensamos: bom, agora o ano começa. Só que estamos em novembro! Fica um desconcerto no ar. Nessas últimas duas semanas, vi opiniões acaloradas e diversas sobre as eleições. Normal. Estamos acostumados e compartilhar opiniões com os amigos e nos círculos a que pertencemos. Mas dessa vez foi diferente. As opiniões foram bem divididas (como ficou bem claro no resultado final).  Foi bastante comum ouvir que tudo que estava aí era ruim e que o Brasil estava afundando. Foi aí que me lembrei da história da Toninha (nome fictício).

A Toninha serviu café em uma grande empresa brasileira por mais de 30 anos. Mais uma daquelas pessoas meio invisíveis com as quais cruzamos no dia a dia. Ela nasceu no interior do Maranhão. Não conheceu o pai, porque o avô tinha ciúmes da mãe e não deixou que ela se casasse. De uma família de 11 irmãos, só 4 estavam vivos quando foi entrevistada. Ela própria quase não sobreviveu, como ela mesma descreve: “Ah, tem uma parte muito engraçada na minha vida... Quando eu era pequena, fiquei muito doentinha, assim, bebê, de 1 ano, 1 ano e pouco. E aí minha mãe teve outra, minha irmã. Minha mãe falou que eu fiquei entre a vida e a morte. E lá, quando a pessoa ficava doente pra morrer, fazia o caixão em casa. Como eu todo dia levava a vela na mão, né?... Que tem o negócio de botar a vela na mão pra morrer na luz de Deus. E aí a minha mãe mandou fazer meu caixão, minha mortalha, tudo meu, e botou, assim, na cumeeira da casa, guardado. Porque, quando eu morresse, já estava feito. Todo dia eu levava vela na mão pra morrer e não morria. Nesse período, tinha uma irmã minha, assim, pequenininha, de seis meses, que era o xodó da minha mãe. Minha mãe só queria a minha irmã. Largou todos os filhos só por causa da minha irmã. Eu já estava ali pra morrer, ninguém nem ligava mais, já estavam pedindo a Deus que eu morresse. Quando foi um dia, eu melhorei. E a minha irmã ficou três dias com febre e morreu. Aquilo tudo que era pra mim, minha mortalha, meu caixão, serviu pra minha irmã, e eu fiquei boa. Sobrevivi, tô aqui contando a história, a minha irmã morreu e a minha mãe ficou muito chateada... Porque disse que era eu que tinha que morrer, né? Aí a minha mãe passou, assim, não a me odiar, mas a não gostar de mim. E me deu logo pra minha tia me criar, pra tirar da presença dela.”

Quando Toninha tinha quase 20 anos, veio “emprestada” com uma amiga da família para o Rio de Janeiro. “Arrumei tudo. Botei minha roupinha, que eu quase não tinha. A gente quase não tinha nada mesmo. Minha roupa e meu sapatinho. Botei e vim embora. Quando chegamos no Rio, ela só me dava roupa, calçado e comida, não me pagava. Aí eu falei pra ela: "Dona Madalena, eu quero é ganhar dinheiro pra mandar pra minha avó.” Aí ela falou: "Ah, mas eu não posso te pagar, não. Só posso te ajudar assim."

Levada por uma vizinha, Toninha conseguiu finalmente o emprego de servir café. Mas foi posta para fora de casa como ingrata e levada por outra vizinha para morar com ela. Engravidou e acabou por criar o filho sozinha. Conseguiu uma casa em uma favela carioca, mas foi ameaçada de morte, abusada e teve que fugir e largar sua casa. Ao longo de sua história, o filho casou, ela aprendeu a ler e manteve o trabalho sem que ninguém soubesse de fato todas as aventuras que viveu.

Lembrei de sua história porque Toninha tem hoje cerca de 55 anos. Sua vida é extraordinária, porém comum. Ela quase morreu na primeira infância, trabalhou desde criança, nunca foi à escola, foi empregada doméstica sem pagamento, foi abusada e enganada, mãe solteira, morou em favela e viu a violência bater às portas de sua casa.

Mas segurou as pontas. Conseguiu um trabalho, criou o filho, aprendeu a ler. Tudo em menos de 30 anos. A história dela mostra, de fato, uma grande mudança no Brasil.

Segundo o site CEPR (Center for Economic Policy Research), “… nos últimos dez anos, a pobreza foi reduzida em 55%, de 35,8% da população para 15,9% em 2012. A extrema pobreza foi reduzida em 65%, de 15,2% para 5,3% durante o mesmo período. Na última década, 31,5 milhões de brasileiros foram tirados da pobreza e, desse número, 16 milhões saíram da extrema pobreza”.

Em nenhum momento do debate político se relativizou o tamanho das conquistas sociais que conseguimos desde o final da ditadura militar. Com certeza existem ainda muitas mudanças que precisam ser feitas. Mas o fato de termos tido uma eleição na qual os três principais candidatos (dois deles mulheres) defendiam políticas de inclusão social é um grande avanço (é só lembrarmos de Collor, Maluf, Sarney, Antonio Carlos Magalhães e outros que permanecem no poder, mas que pelo menos não são mais candidatos a se tornarem a cara do Brasil).

Acho que essa constatação dá para acalmar os ânimos. E nos fazer ter orgulho do que acabamos de viver (tanto da Copa quanto das eleições). Pelo menos o copo não está totalmente vazio. E Toninha faz parte da mudança que fez dele mais cheio.


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