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COLUNAS


Francisco Viana
viana@hermescomunicacao.com.br

Jornalista, Doutor em Filosofia Política (PUC-SP) e consultor de empresas.

 

A linguagem do jornalista

              Publicado em 10/10/2014

O jornalismo não paira acima da realidade, não paira acima das pessoas, não é uma espécie de entidade. Somos seres históricos, inscritos na cultura, carregando uma história de vida

Eliane Brum, em Mestres da Reportagem¹

Estava na Livraria Cultura, escrutinando livros, quando me caiu nas mãos um trabalho feito por jovens estudantes que  ilumina o permanente diálogo com a realidade e seus múltiplos impasses. Era o livro Mestres da Reportagem, com prefácio de José Hamilton Ribeiro, escrito com matéria-prima colhida nas ruas, no mundo real, e que perpassa não só a vida das fontes de informação, mas, sobretudo, de repórteres do calibre de Ernesto Paglia, Eliane Brum, Elvira Lobato, Geneton Moraes Neto, Percival de Souza, Ricardo Kotscho e Roberto Cabrini, ao todo, três dezenas de profissionais. 

Ao percorrer suas 525 páginas, que emerge toda uma filosofia da reportagem, sintetizada logo no texto de abertura de Adriana Carranca: “As pessoas precisam olhar para os conflitos de uma forma mais humana.” Ou como, logo a seguir, registra o repórter Agostinho Teixeira, radialista dedicado ao jornalismo investigativo, ao falar do papel da grande imprensa: “Eu não conheço nenhum jornalista que pegue o microfone e que não queira falar a verdade, pelo menos a verdade dele. As pessoas têm ideias diferentes e querem se expressar.” E pelo conceito do repórter Valmir Salaro, conhecido pelo impacto de matérias televisivas que tratam de crimes: “É melhor apurar à exaustão do que dar um furo e cometer um grande erro”.

Entre um extremo e outro, a visão de Mauri König, da Gazeta do Povo: “A imprensa é o facho de luz sobre a atuação de grupos políticos, criminosos ou grandes corporações”. É um livro de entrevistas, organizado pela professora Patrícia Galvão e seus alunos do curso de Jornalismo da Universidade do Povo, de São  Paulo. Conta bastidores das reportagens, fala dos desafios da busca da notícia e do compromisso dos seus protagonistas com a liberdade de expressão, mesmo correndo risco de vida.

José Hamilton Ribeiro, por exemplo, hoje com 77 anos, grande repórter da revista Realidade, foi ferido na Guerra do Vietnã, em 1968, atingido na perna pela explosão de uma mina, fala da profissão com estas palavras: “Só sobe nessa carreira quem abre seu caminho na pedra do muro com a unha.”

Arranhar a pedra pode ter significados múltiplos. Para Ribeiro, é sinônimo de não ser egoísta, partilhar informações com “ética e de forma envolvente”. Significou, para ele, no passado, enfrentar a censura do regime militar e ser criativo para retratar a alma humana. Elvira Lobato fala do trabalho meticuloso e da curiosidade que move o repórter como características essenciais. Goulart de Andrade lembra as dificuldades de mostrar a realidade, em particular no regime militar, época em que a “inteligência era punida”.

Luiz Carlos Azenha destaca a necessidade de ter senso crítico. Percival de Souza, jornalista há quatro décadas, enfatiza a ação da imprensa como mola propulsora para solução de problema: "A reportagem tem a função de informar tudo da melhor maneira possível, o que, aliás, é profundamente político. A partir daí, sim, as instituições passam a se mexer. No Brasil, muita coisa só acontece em face da ação da imprensa." E argumenta: "A imparcialidade é contar o que aconteceu - quem, onde, como e por quê." A talentosa Eliane Brum, que trouxe ao jornalismo a vida de pessoas comuns, transcende a questão da contradição dos fatos, uma "zona cinzenta" como essência do jornalismo, e abre o leque falando da necessidade do jornalista ser capaz de "escutar" e "alcançar a história que é do outro".

​Destaca, referindo-se ao jornalista: "Precisa lembrar que não somos amigos nem inimigos da fonte, estamos apenas no lugar da escuta". Ele explica que quase não faz pergunta, porque esta é uma forma de controle. Prefere que as pessoas simplesmente falem. Mas ressalva, com propriedade: não se trata de uma regra para todas as reportagens. Tanto é assim que Marcelo Rezende entende que o repórter deve ser o chefe de si mesmo: construir suas pautas, suas fontes, trabalhar com seus próprios critérios, sem pensar na curiosidade de ninguém, mas no interesse público. Recorda que, certa vez, ficou quase um ano no O Globo apurando uma reportagem. Precisa fazer aquilo que considera fundamental: apurar o fato à exaustão.

As diferentes visões formam um vasto quebra-cabeças, com as peças se encaixando na atividade concreta do dia a dia. Ernesto Paglia, experientíssimo repórter de TV, que traz em seu extenso currículo uma entrevista com Mikhail Gorbachev, no caso da Guerra Fria, resume o trabalho jornalístico de forma simples: “Minha obrigação é, de alguma forma, representar o telespectador”.

Geneton Moraes Neto, que durante anos dirigiu o Fantástico, da Globo, e entrevistou escritores como João Cabral de Melo Neto e Nelson Rodrigues, além do jornalista Carl Bernstein (famoso pelas reportagens sobre o caso Watergate, que culminou com a renúncia do presidente Richard Nixon), encontra outro caminho para dizer, talvez, algo parecido: ele recorrer às entrevistas para revelar as pessoas e construir a memória.

Explica não buscar o congraçamento com o entrevistado, nem o engajamento ideológico, nem quer “bancar o bom moço”: quer fazer chegar ao público "informações que, de alguma maneira, sejam úteis e lancem uma ou outra luz do absurdo da vida.” Absurda ou não, a vida e a procura da liberdade circulam por todo o livro. Como lembra a repórter Tatiana Merlino numa das entrevistas: “É preciso ser ético, estar próximo do povo, dar voz a ele”. Merlino, da revista Caros Amigos, lembra, ainda: “O princípio do jornalismo é o serviço público”.

Mestres da Reportagem, além de desvendar o que pensam e fazem aqueles que descobrem e divulgam a notícia como se fossem beduínos no deserto, traz a tona o talento da nova geração de jornalistas que soube fazer notícia com aqueles que nunca são notícia. Um livro para ler, estudar e divulgar. Ao lê-lo, pode-se, claramente, perceber o valor da liberdade como conquista do jornalismo. E, de tudo que se pode enumerar como filosofia do jornalismo, sem dúvida o pressuposto mais valiosos é o interesse pelo leitor e pela realidade. Nada é mais importante. Nada é mais cotidiano.


(1) Paixão, patrícia (Org.). Mestres da Reportagem. Jundiai, SP: Editora  In House, 2012. 


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