Há uma cena no filme “Pinóquio”, de Walt Disney, em que meninos são atraídos por duas raposas espertas para uma espécie de parque de diversões - a Ilha dos Prazeres - onde é proposta uma vida plena de facilidades. Lá se pode jogar baralho, sinuca e até fumar charutos - “coisas feias” para a moral da época em que o filme foi realizado, 1940. Não sei se este contexto está inserido no original do conto de Carlo Collodi (1883), pois nunca o li. Depois de atraídos ao local, na maior festa, os meninos começam a perceber que estão se transformando em burros. Crescem orelhas, rabos e patas e começam a zurrar desesperados, arrependidos da farsa a que foram impostos. Do local, são encaminhados ao trabalho forçado, isto é, puxar carroças.
Nos últimos tempos, tenho observado jovens entre 25 e 40 anos passarem pelo mesmo processo em algumas empresas, principalmente entre as multinacionais. A metáfora do conto “Pinóquio” serve para a seguinte situação: “Venha para a nossa empresa, dê tudo de si, passe noites em claro, trabalhe até tarde, largue a família, filhos e se dedique à nossa causa, que é gerar lucros cada vez maiores para nossos adorados acionistas. Nós lhe daremos participação nos resultados, status, viagens internacionais, convenções festivas, laptops e celulares de última geração, prêmios por desempenho e a possibilidade de ascensão profissional.” O que de fato acontece é que esses “meninos burros”, depois de certo tempo, são sumariamente dispensados - trocados por forças de trabalho com menos idade e, em consequência, mais baratas. Quarentões e quarentonas, depois de dedicarem a época mais criativa e produtiva das suas vidas às empresas que amam, são dispensados sem a menor cerimônia. Começa a percepção da amarga realidade: a empresa na qual se empenharam não é mais aquela família risonha e franca que acreditavam ser. Aí, já é quase tarde. Buscar outra colocação, abrir seu próprio negócio ou diminuir o ritmo?
Tenho encontrado por toda a parte jovens desesperados com o atual ritmo de trabalho imposto pelas empresas. Alguns estressados como soldados em campo de batalha, outros vítimas de acidentes por déficit de atenção e muitos em processo de separação matrimonial. No ano passado, fui chamado por uma grande empresa para organizar um workshop com o seu pessoal de serviços. Recebi o briefing das mãos de um desses profissionais. Exigente ao extremo, queria produção ao máximo, era tudo ou nada: seus “colaboradores”, ou traziam lucro, muitos dos quais fora das suas áreas de ação, ou seriam dispensados. Com ele a ordem era apertar todo mundo e tirar o máximo que o pessoal podia oferecer. Sua promissora carreira estava em jogo e ele seria julgado pelo desempenho exigido dos seus colegas de trabalho. Feitores dos tempos escravagistas eram mais complacentes. Dias antes do evento liguei para saber se estava tudo certo. Não estava. Ele havia sofrido um infarto e fora internado numa UTI. A pressão que ele impunha aos outros se voltara contra si próprio. Outro gerente de contas, recém-casado, com filho pequeno, ao dirigir por uma autoestrada e obrigado a estar conectado no celular com a empresa para saber em real time às quantas andava o trabalho, bateu de frente com um caminhão. Escapou por pouco e, ao acordar em leito hospitalar, fez um balanço da sua vida, largou a empresa e foi fazer outra coisa - com um propósito melhor.
Há um contrassenso nos discursos das empresas. Elas falam de qualidade de vida, melhor lugar para se trabalhar, empresa modelo, e ao mesmo tempo arrocham o pessoal. Ganhos imensos conseguidos com este novo modelo de trabalho muitas vezes são jogados fora em operações financeiras arriscadas ou em transações de compra e venda em bolsas de valores, onde ativos empresariais são vendidos a novos acionistas como se vendem bananas. Os que trabalham e dão o sangue nos caminhos da indústria e do comércio não são levados em consideração - como móveis e equipamentos, fazem parte dos números. Só não são chamados de semoventes porque este termo há muito deixou de aparecer nos registros contábeis das empresas modernas.
É claro que a competição, produtividade e meritocracia são necessárias, mas é preciso levar em consideração que trabalho é um meio de vida, não de morte. E por que somente no ambiente empresarial esta exigência? Todo o esforço que fazemos para ser produtivos morre na inoperância do Estado brasileiro com seus altos impostos, suas burocracias e regras draconianas, na corrupção endêmica dos políticos, na falta de infraestrutura e nos péssimos serviços públicos. Ser funcionário exemplar ou empreendedor no Brasil de hoje faz mal à saúde.