O vilão lá fora
Entre Helvécia, no extremo-sul da Bahia, região que não muito tempo atrás concentrava um dos bolsões de miséria do nosso país, e Oslo, na Escandinávia – locais que há alguns anos visitei no espaço de apenas 15 dias –, existe um fosso profundo. Que não é a flagrante desigualdade de riqueza, educação, oportunidades e bem-estar social.
É um fosso de desconhecimento, um hiato criado pela nossa dificuldade de compreender outros mundos que coexistem neste mundo de nós todos. Um gap que os mais bem-intencionados esforços de educação, informação e engajamento, pelo menos no horizonte visível hoje, são incapazes de preencher.
A elegante senhora que se agacha, compungida e solícita, diante do jovem dependente químico maltrapilho e mendicante na imaculada Karl Johans Gate, a principal avenida da capital de um dos países mais ricos do mundo, fará ideia das condições em que vivem os milhões de miseráveis que lutam pela sobrevida nos confins interioranos do norte e nordeste brasileiros ou nas periferias de nossas metrópoles?
As centenas de turistas escandinavos que, testemunhei, se comoviam e mobilizavam diante de enormes painéis exibindo fotos belíssimas de caçadores, mulheres e crianças indígenas amazônicos, nas ruas de Oslo, teriam alguma ideia do contexto em que estes nossos povos originais sobrevivem, em meio a outros 20 milhões de conterrâneos de todas as origens — europeias, negras e asiáticas — que habitam a vasta Amazônia brasileira? Terão eles noção dos desafios de governança de um país de dimensões continentais como o nosso, com 200 milhões de habitantes e pouco mais de 200 anos de história nacional, num mundo de economias globalizadas?
Aqui, cabe remeter à questão essencial: nós, os humanos, em nossa trajetória sobre a Terra, continuamos longe de superar o desafio de nossa condição intrínseca, utilitarista quanto aos recursos naturais e leviana quanto às consequências de nossos atos e escolhas sobre o futuro comum. Enquanto essa pulsão não for domada, disciplinada, pouca esperança restará para as próximas gerações. A culpa e o imediatismo continuarão a prevalecer, mesmo por trás da fachada de ajuda humanitária, de altruísmo dos muito ricos com relação aos muito pobres. Esse quadro só poderá ser superado por novas visões de mundo que conciliem os avanços da ciência e da tecnologia com o entendimento de que somos um único povo, habitante, dependente e organicamente parte de um planeta cujos recursos são na sua maior parte finitos – e que só conciliando (na medida do possível) nossas diferenças conseguiremos sobreviver.
Para o “olhar estrangeiro” convencional, a uma análise mais profunda das razões para nossas diferenças culturais e sociais parecem preferíveis conclusões simplistas que remetem ao ancestral embate entre o bem e o mal. Fica mais fácil acreditar em um grande vilão e assim expiar a responsabilidade por cada abuso socioambiental que ocorre em qualquer canto do planeta. Responsabilidade pela omissão, responsabilidade pelo desinteresse, responsabilidade pela conveniência.
E então assistimos a algo que se pode configurar como “dumping reputacional” de países, empresas e instituições. Um processo em que o hiato de compreensão entre realidades diferentes no planeta é utilizado como alavanca para reforçar percepções simplistas; em que situações complexas que requerem análises e soluções igualmente complexas veem-se reduzidas a uma visão maniqueísta, passando ao largo das infinitas nuances da vida real.
É assim que países do hemisfério norte encontram seus vilões na metade de baixo do planeta, tão distante de seus corações e mentes. E vice-versa. Gente preparada e bem informada, tanto lá quanto aqui, não raro dá crédito a fontes que nem ao menos se preocupam com a fidedignidade das histórias que se propagam, sobretudo pela Grande Rede. Por que nos é tão difícil, por exemplo, perceber a enorme diferença que existe entre empresas locais ou de fora que, malgrado suas imperfeições, dilemas e dificuldades, se esforçam por práticas socioambientais corretas, e aquelas inconsequentes e imediatistas?
Sob o ponto de vista dos países emergentes, uma hipótese é que, para alguns cidadãos de países mais ricos, seja difícil admitir que interesses específicos de suas próprias economias possam estar por trás de denúncias que acolhem como verdadeiras. Afinal, em muitos casos, o desenvolvimento sustentado de países como o Brasil e o relativo sucesso das nossas empresas podem representar ameaças para suas empresas ou para os empregos de alguns dos seus compatriotas. É melhor acreditar no vilão lá longe, abaixo da linha do Equador. E o oposto não é menos verdadeiro: daqui, muitos de nós tendem a imputar a “culpa” pela situação a que chegou o nosso planeta exclusivamente sobre os países desenvolvidos, que – por terem iniciado bem antes o processo “civilizatório” e implantado o capitalismo moderno, com todos os respectivos benefícios e mazelas – esgotaram os recursos e agora se voltam para cá...
Há também uma parcela de responsabilidade dos governos, empresas e das ONGs de países emergentes, como o Brasil. É preciso um esforço maior – consistente e permanente – de comunicação, daqui para o chamado mundo dos ricos, para estabelecer os fatos e desfazer a confusão provocada pelas denúncias falsas, embaladas na defesa de causas nobres e em chavões politicamente corretos. Sem minimizar nem tentar justificar os descalabros, expostos dia a dia nas manchetes dos jornais, que infelizmente continuam a refletir nossa indigente representação política e acabam por confirmar as percepções mais negativas, matando pela raiz qualquer disposição mais benévola de entender a nossa realidade.
Uma missão na qual muitos comunicadores empresariais brasileiros já estão engajados, com seu conhecimento, experiência e redes de relacionamento, a bem do interesse de suas próprias organizações e do nosso futuro comum.
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