O documento como ficção
A cineasta Agnès Varda.
No cinema, o documentário se firmou como um gênero que aparentemente se contrapõe à ficção. O documentário chama para si os atributos de acontecimentos vivenciados pela sociedade em seus âmbitos privados e públicos. A mediação exercida por roteiristas, diretores, editores e atores pretende, ao documentar, se apresentar muito distante do sentimento de interferência na realidade. O documentário é visto como uma reunião de documentos e de testemunhos, para se constituir em uma prova, de preferência jornalística, em uma notícia. Na sua origem, os seus realizadores parecem esquecer que a imagem, mesmo aquela referenciada na realidade é representação. É um realismo que esconde a intenção daquele que documenta e que não quer reconhecer que a memória e imaginação não são história.
Memória é aquilo que destacamos de uma experiência individual, social, cultural. Imaginação é capacidade de fabular e representar o que poderá acontecer.
Memoriar ou imaginar são exercícios intelectuais baseados em nossas experiências. São dimensões de uma discussão milenar sobre a relação entre imagem e realidade nos campos da religião, filosofia e contemporaneamente nos campos da comunicação e das artes.
A ação de escolher e trabalhar sobre o tema a ser documentado produz pontos de vista, não reproduz uma cópia fiel. Como exemplos atuais dessas discussões sobre imagem e realidade, a sociedade global desconfia e coloca em dúvida a credibilidade daquilo que o jornalismo lhe entrega de forma torrencial, diante de notícias como as do envolvimento do jornal tablóide dominical britânico News of the World – propriedade do grupo News International, do milionário Rupert Murdoch – em um escândalo de escutas telefônicas ilegais; como questiona, também, as relações entre as imagens disponibilizadas pela publicidade e a realidade dos produtos; as relações entre as promessas dos políticos e as suas práticas. Dentre esses campos de atuação narrativa, o jornalismo destacadamente não trabalha com a possibilidade de que a sua narrativa possa ser manipulada; quando o relato é autoral, o jornalismo se apresenta como literário; quando audiovisual, a câmera é testemunha, “ao vivo”.
A imagem verdade
Até os anos 1960, o documentário, com relato próximo do jornalismo e da história, foi arma comportamental, política, psicológica e social. Apenas como um rápido registro, no Brasil, tendo como referência a Segunda Guerra Mundial, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), do governo de Getúlio Vargas, patrocinou Jornada Heróica (1949), dirigido por Alexandre Wulfes. Entre os anos de 1965 e 1967, o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) patrocinou o documentário Segunda Guerra Mundial, montado por Alberto Salvá (1938). Estas produções tiveram o objetivo de engrandecer as ações da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, a partir de uma visão oficial.
Leni Riefenstahl (1902-2003) e Michael Moore (1954) são exemplos de documentaristas que trabalharam com imagens a serviço da propaganda. A cineasta alemã Leni Riefenstahl se inspirou no nazismo para produzir os documentários A vitória da fé (Alemanhã, 1933), Triunfo da Vontade (Alemanha, 1935) e Olímpia (Alemanha, 1938). Em Triunfo da Vontade (Alemanha, 1935), encomendado por Adolf Hitler, Riefenstahl documentou o megacongresso do Partido Nazista (NSDAP), que reuniu milhares de seus correligionários em Nuremberg, em 1935. Riefenstahl capturou 61 horas de imagens, por meio de 30 câmeras colocadas estrategicamente no estádio e em aviões para documentar e destacar os movimentos coreografados dos soldados nazistas, os discursos de Adolf Hitler e as reações de seus ouvintes. Olímpia é sobre a participação alemã nos Jogos Olímpicos de 1936. Seus filmes são exemplos de realidades transformadas pelo trabalho do diretor engajado com as questões do seu e de outros tempos. O diretor, mais do que artesão, é transformado em protagonista de ideários e de bandeiras. Contemporaneamente, os trabalhos de Michael Moore escancaram o lado ficcional do documentário. Moore força a barra em suas críticas as corporações, como em Roger e Eu (EUA, 1989), onde narra a sua ligação com a história da primeira fábrica da General Motors (GM), coincidentemente local onde o pai de Moore trabalhou. O Eu do título é Moore que protagoniza no filme o caçador da verdade. Meio bufão, engraçado, Moore repete este desempenho, de diretor-ator, em Capitalismo: Uma história de amor (EUA, 2009) onde o acerto de contas é com os grandes bancos internacionais, os vilões da crise financeira mundial de 2008. Neste filme, ele vai atrás das provas documentais dentro das instituições bancárias. Dirige caminhão de transporte de valores, empunha microfone frente à câmera, para conseguir depoimentos de executivos financeiros que passam por Wall Street. Leni Riefenstahl tem o seu protagonismo escondido atrás de escolhas preliminares, na seleção de planos, na trilha wagneriana e montagem. Moore é o herói militante em seus documentários.
Ensaios sobre a realidade
Sem fazer o barulho e alcançar a visibilidade da produção militante, outro tipo de audiovisual procurou, desde o seu início do gênero, a sua libertação da representação da realidade, como uma cópia fiel. Os documentários de Robert Flaherty (1884-1951) e Jean Vigo (1905-1934) são reflexivos e reconstroem aquilo que as suas câmeras registram. Em Nanook, o Esquimó (EUA, 1922), reconhecido como o primeiro documentário da história do cinema, Flaherty ensaiou, para uma sequência que registrou uma caçada de morsas, um grupo de não-atores, revelando a intervenção do diretor. Em À Propos de Nice (França, 1930) produz um documentário poético sobre o cotidiano econômico da cidade francesa de Nice. Entre os anos 1950 e 2000, os franceses Alain Resnais (1922) e Agnès Varda (1928) abordam a realidade de uma forma ensaística e aberta, a partir de micro-histórias, narrativas pessoais e da observação do cotidiano. De Resnais, destaco As estátuas também morrem (França, 1953) e Noite e Nevoeiro (França,1955); De Varda, os documentários Muros e Murmúrios (França, 1981), O universo de Jacques Demi (França, 1995) e As praias de Agnés (França, 2008).
São produções documentalistas que mostram um gênero que tenciona as fronteiras que dividem as narrativas entre as convenções do realismo e da ficção, dignificando e deixando os públicos livres para estabelecer os seus entendimentos.
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