A Lei Rouanet e a irresponsabilidade social
“Acorde” é um grupo vocal masculino potiguar, criado em 1997 na Universidade Federal do RN. O grupo apresenta um repertório de música brasileira, que ecleticamente transita de Pixinguinha a Luiz Gonzaga, passando por Villa-Lobos e Oswaldo Montenegro. Com uma técnica vocal sofisticada, o Acorde mescla rigor técnico-musical com irreverentes coreografias. O show é divertidíssimo.
Para alguém acostumado à grande oferta cultural paulista, deparar-se com uma apresentação deste quilate na cidade de Natal é no mínimo surpreendente. Um misto de arrogância e desdém pela cultura produzida alhures nos leva a achar que a arte pede atestado de procedência ou de IDH. Mas não pede.
A cultura é democrática e o que distingue a arte produzida nos rincões daquela da metrópole é a natureza de sua criação, a formação do artista e o ambiente em que é desenvolvida. Talento não se mede. Talento se percebe, talento se aplaude, talento se incentiva.
As leis de incentivo à cultura surgiram justamente para suprir a necessidade de financiamento da produção artística nacional, fosse por necessidade de recursos de produção, por dificuldades do artista de se manter apenas com a bilheteria, ou para garantir a divulgação de espetáculos e produções.
A revisão da Lei Rouanet está na pauta do dia. E o debate passa pela questão se deve ou não haver um controle oficial sobre essa renúncia fiscal.
O papel das empresas
Para uma empresa, as leis de incentivo podem representar uma efetiva ferramenta de apoio à cultura e de engajamento social. Mas podem também ser simplesmente uma forma de marketing “cultural” ou um mero instrumento de abatimento fiscal.
Como se trata do uso de recursos de impostos que originalmente seriam revertidos para a sociedade, é tênue a linha que separa o livre arbítrio das empresas em “selecionar” os projetos incentivados e a função social que esses investimentos em cultura deveriam ter.
Uma empresa se relaciona com diversos públicos e acaba impactando a sociedade como um todo. Suas decisões de investimento e a gestão dos negócios deveriam levar em conta esses impactos, assim como os projetos culturais por ela apoiados.
Mas como cultura é um tema fora do core business das empresas, as decisões do investimento cultural muitas vezes são tomadas com base em critérios que não são nem artísticos, tampouco sociais.
Pode ser adotado o critério da conveniência, quando se escolhem projetos culturais cujos orçamentos se encaixam exatamente no valor dedutível do imposto devido. Pode ser uma escolha baseada no caráter “midiático” do projeto, que garanta um retorno de imagem à empresa.
Mas qual seria o critério ideal para selecionar um projeto cultural a ser patrocinado? Onde se encaixam, nesse processo de decisão, a ética empresarial, a noção de responsabilidade social e a preocupação com as reais demandas e anseios das comunidades?
Não há, no Brasil, uma isonomia na distribuição do investimento em cultura. Ele é concentrado no Sul e no Sudeste, que recebem quase 90% dos recursos da Lei Rouanet, segundo o Ministério da Cultura. Obviamente o Norte, Nordeste e Centro-Oeste não produzem uma cultura “pior”. Tampouco o imposto arrecadado nessas regiões vale “menos” que no Sul ou no Sudeste.
Mesmo que não se estivesse falando de recursos oriundos de renúncia fiscal, a simples presença das empresas em regiões carentes de equipamentos culturais (entendidos como salas de cinema, teatros, museus, bibliotecas) justificaria o investimento na cultura local. Cidades inteiras nascem e crescem em torno de novas fábricas e, muitas vezes, “dependem” dessas operações industriais.
Da mesma forma como investem em educação, na saúde e na infra-estrutura das localidades onde estão instaladas, as empresas deveriam apoiar a cultura local e regional. A atuação de uma empresa na transformação da realidade local deve ser exemplar, firme e catalisadora em prol de uma sociedade mais justa e inclusiva. E a cultura é uma poderosa ferramenta de transformação, principalmente da juventude.
Empresas que fecham os olhos para essa cultura local estão se esquecendo de seu papel perante a sociedade. Estão pondo em prática uma espécie de “irresponsabilidade social” em relação à cultura.
Enquanto isso ocorrer, grupos como o Acorde estarão confinados aos palcos potiguares. Para infelicidade dos demais brasileiros que apreciam a boa música.
PS. O grupo vocal Acorde é composto pelo tenor Ciro Celestino, os barítonos Sérgio Miguel e Fabiano Romero e os baixos André Alves e Maurício Motta. O Acorde não possui (ainda) registro na Lei Rouanet, e foi citado apenas como exemplo. O grupo apresentou-se no encerramento do I Encontro de Comunicação Organizacional do Nordeste (I ECO Nordeste), na UFRN, em novembro. No Youtube, pode-se conferir o grupo em ação.
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