A imagem enquanto desconfiança
Copyright Terra Magazine - 18/09/2010
Cena do filme "Santiago", de João Moreira Salles.
A descomunal turbina informacional de nosso tempo nos oferece, em torrente, todo o tipo de testemunho. Dentro desse ambiente, a imagem digital é uma grande commodity. Quase todos se transformaram em consumidores-produtores de imagens. A tecnologia voltada para a produção de imagens é um acessório barato instalado no que é mais portátil, móvel e transmissor, hoje, o telefone celular. O ato de documentar perdeu qualquer cerimônia, ocupou todos os lugares e todos os tempos. Estamos longe do tempo em que as câmeras eram como pequenos fetiches negros, personagens de poemas e de letras musicais. O material fotográfico, o filme, era raro e caro. A produção de imagem era atividade de artesãos, em toda uma extensão, do fotógrafo de praça ao cineasta.
Nesse universo de imagens amadoras e industriais facilmente produzidas e veiculadas se faz necessária a reflexão sobre a criação, a produção, edição e o consumo de imagens. No caso dos documentários, um processo de reflexão mais necessário ainda, porque esse tipo de audiovisual traz uma aura de verdade. De antemão, contam com o emblema da credibilidade. No Brasil, documentaristas como Eduardo Coutinho e João Moreira Salles têm produzido essa reflexão sobre imagem, verdade e representação, convidando-nos a desconfiar daquilo que emana das mensagens audiovisuais.
No documentário Jogo de Cena (2007), Coutinho coloca no ambiente de um teatro 83 mulheres escolhidas a partir de um anúncio de jornal para falarem sobre aquilo que inicialmente acreditamos serem fatos marcantes de suas vidas. Essas mulheres originárias das ruas, aparentemente não contaminadas pelas técnicas de representação, falam de amores efêmeros, mortes de parentes amados, ressentimentos. A nossa desconfiança, enquanto receptores, sobre a veracidade daquelas histórias de vida femininas é despertada quando as mesmas narrações das mulheres comuns são feitas por atrizes, as profissionais da narrativa, como Fernanda Torres, Andrea Beltrão e Marília Pêra. O sentimento de que as vidas ali podem ser apenas peças de uma ficção criada pelo diretor é reforçado pela ambientação ocorrer no espaço da representação e da memória, o teatro. As perguntas afloram. Quem representa quem? Todos ali estão representando? Coutinho ao misturar atrizes e mulheres “reais” derruba a nossa crença ingênua na narrativa pura, bruta.
João Moreira Salles, em Santiago (2007), faz uma meditação audiovisual sobre um extenso material bruto constituído de muita produção e 9 horas de gravações com o mordomo de sua família, Santiago Badariotti Merlo. A sua direção nas gravações das falas do velho mordomo é exposta de forma dura. O que revela principalmente em sua segunda parte “Reflexões sobre o material bruto” a forma como o filme é construído e, mais, a presença do diretor como um protagonista tão importante e central como o protagonista que dá nome ao documentário. As memórias reveladas por Santiago no audiovisual são manipuladas por Moreira Salles, da mesma forma como por outros meios de comunicação reinventamos as nossas memórias de família, de cidade e de país. O que vai para a tela, para o papel, para os nossos sentidos não é mais o bruto, o original, é representação.
Beatriz Sarlo, em seu livro Tempo Passado (2005), ao revirar e examinar memórias de presos políticos argentinos não coloca jamais em dúvida as torturas e sofrimentos acontecidos durante as ditaduras militares argentinas, no final do século XX. Sarlo coloca em dúvida as representações produzidas a partir dos crimes contra a humanidade. Mais do que nunca, nos tempos atuais e de eleições precisamos desconfiar das imagens.
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