Os números e os ignorantes e idólatras da mensuração
Freud, ao pensar as ciências e seus mitos concluiu que “cada ciência, no final de contas, se reduz a um certo tipo de mitologia”. E, se este mestre permite a escora, mitologia existe, entre outros motivos, para explicar o que as ditas ciências têm como duvidoso. E no terreno das incertezas, as ciências sociais, como um exemplo, muitas delas ditas aplicadas, entre elas a comunicação, têm dentro de suas mitologias particulares, o mito da classe média, amplamente contestado por durkheimianos, weberianos e marxistas.
Uma categoria epistemológica elástica em termos sociais, econômicos, profissionais, éticos e suas narrativas. Fato que se expressa em representações institucionalizadas, estas históricas, e, também, nas representações atualizadas pelo jornalismo, pelo entretenimento e pelos políticos, acadêmicos e comunicadores. Comecemos, então, a falar dessas narrativas pelas imagens tradicionais desse segmento social que tem uma topologia continental, que se inicia em uma fronteira onde estão os pobres e chega até o limite do paraíso dos bastantes abastados. Uma categoria que é definida e é representada classicamente pelas profissões atualmente massificadas como a do advogado, do administrador, do engenheiro, do médico, do jornalista, do comunicador, dos infoproletários e, de forma ampla, na figura daqueles que organizam e controlam os processos de trabalho. Essas representações tradicionais da chamada classe média estão expressas em obras das literaturas europeia e brasileira dos séculos XIX e dos meados do século XX. Ali estão descritas pessoas que constroem as suas identidades espremidas pelas identidades ainda fortes dos pobres e dos ricos.
Machado de Assis foi um mestre em representar essa gente média no dinheiro e no amor. Em seu livro Memória Póstumas de Brás Cubas, Machado tem em Dona Plácida a representação de quem sofre e trabalha duro na sociedade brasileira, dividida em sua época entre a elite e os escravos. Outros personagens de Machado, a Guiomar, de A mão e a Luva, e a Iaiá García, no romance do mesmo nome, saem de suas vidas medianas por meio de casamentos interesseiros. Ainda no universo da literatura brasileira, Nelson Rodrigues apresenta um conjunto poderoso de personagens deste território social, que tem como resultantes pessoas perdidas e atormentadas principalmente pelos seus papéis sociais, comportamentais e sexuais, exercidos de maneira hipócrita. Arnaldo Jabor, em entrevista para a revista Bravo!, afirma que “Nelson fez um trabalho de visualização humana único. Sua obra é o tratado mais completo sobre as classes médias brasileiras, sobre seu comportamento psicológico, sexual e linguístico”.
O livro Babbitt de Sinclair Lewis, publicado nos anos 1920, fala de tipos pertencentes a uma classe media norte-americana conformista e centrada no desejo e no ato de consumir. Mais contemporâneo, o escritor John Cheever descreve esses entes médios no dinheiro e no comportamento, áridos espiritualmente e intelectualmente, nos subúrbios norte-americanos. Misturo Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Sinclair Lewis e Cheever para mostrar a dificuldade de se criar uma descrição, a partir da literatura, que não é ciência, do que se configura como classe média. No entanto, quando entramos no terreno do mito, vale tudo. A expansão dessa imagem não tem limite. Provavelmente colocaríamos no mesmo balaio a classe média chinesa e a classe média portenha.
Entre as identidades dos pobres e dos ricos brasileiros
Na última década, a estas figuras profissionais e tradicionais da classe média foi adicionada uma massa de pessoas, que no discurso dos políticos foi resgatada da situação de pobreza. A força do verbo resgatar comparada, por exemplo, ao sair faz toda a diferença para quem tem os olhos nos milhões de votos que farão o novo presidente ou presidenta, além de dezenas de governadores, deputados e senadores. Resgatar tendo como referência os resgatados é passivo, conformado. Sair do ponto de vista de quem sai do buraco social e econômico é ativo. Quando a conversa tem como centro de atenção as vendas e os resultados comerciais, a narrativa mercadológica e publicitária transforma toda essa massa de gente em classe C, que representa um novo commodity brasileiro, um contingente de consumidores continental, a maior parte do oitavo mercado consumidor global. Os velhos e coloniais commodities brasileiros estão bem representados em nossa bandeira. No novo Brasil é mapeado um consumidor voraz de geladeiras, fogões, cosméticos, comida e carros populares
Fala-se em um segmento social que consome algo em torno de R$ 1 trilhão por ano. No novo Brasil, a “nova classe média”, é mercado político e mercado econômico. Nesse novo Brasil do entretenimento, a antiga pobreza que se estende de norte a sul está concentrada ficcionalmente e principalmente na baixada fluminense, no Divino, no Morro do Alemão pacificado e no Esquenta da Regina Casé. Está nas novelas como mulheres e homens sempre muito safados e alegres, uma releitura de Macunaíma, que os colocam como adoradores de cervejas, para quem, agora, é oferecido vinho, talheres, guardanapos e comida de chef.
Como criar folhetins no Brasil sem estereótipos que passam pelo samba, sol, futebol e praia?
No documento Vozes da Classe Média: É ouvindo a população que se constroem políticas públicas, produzido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, divulgado em setembro de 2012, a Classe Média soma 53% da população, cerca de 104 milhões de brasileiros. O documento destaca que “por seu próprio tamanho, a classe média não poderia ser homogênea”. Comentário correto que muitos narradores do entretenimento e da publicidade nacional não leram ou não quiseram ler. É só acompanhar as produções atuais de entretenimento da televisão nacional, que apresentam esta classe emergente como uma mistura de chiclete com banana, Miami Beach e Copacabana. Ainda no documento oficial citado, a diferença e a diversidade da população brasileira se fazem presente no desenho dessa classe. Negros e brancos se dividem quase igualmente nesse segmento social, quase todo urbano. E a sua metade está na região Sudeste (45%), acompanhada do Nordeste (24%). Em destaque no documento estão as informações que essa “nova classe” não quer só comida, quer também acesso aos serviços privados de saúde e educação. E em tempo de Copa do Mundo, essa gente foge cotidianamente dos exercícios e do esporte. Longe dos estereótipos nacionais, essa classe média se preocupa com a preservação ambiental em questões locais e globais. Parece que os números, para quem quer ver e enxergar, ouvir e escutar, sempre são mais do que pura expressão matemática. O problema é que os ignorantes e os idólatras da mensuração não entendem que os números também flertam com os mitos. Assim, só conseguem ver nessa classe média brasileira o seu potencial comercial. Reduzida a isso, para a gente publicitária e os seus Joseph Goebbels tropicais a classe média não tem potência política e cultural. Quem viver verá no que vai dar essa miopia dos que fazem a chamada comunicação governamental e as tais políticas públicas. Em tempo, eu observo que no final do documento, um grupo de personalidades do mundo da universidade, das ONGs e da publicidade opinam que a nova classe média brasileira também quer a banda larga de internet, acesso às redes sociais, aos celulares, ao ciberespaço, este já “invadido por gente mais pobre, mais negra, de baixa escolaridade”. Ainda nesse campo da opinião adicionado ao documento, sem o respaldo dos números expostos no documento, a mulher, o jovem e o negro são apresentados como os heróis da nova classe média brasileira. Gente varonil, positiva, sem preconceito, pau para toda a obra. Uma derrapada narrativa para o ponto onde a Estatística governamental, as ciências sociais e a Mitologia se convergem e se abraçam transformando-se em Propaganda de Estado.