Madonna, carnaval e investimento social privado
O Carnaval passou, sobraram as suas lembranças. Como esta não é uma coluna de variedades, mas de sustentabilidade, o fato em questão ocorreu nos bastidores da grande folia e só veio a público por conta do trabalho jornalístico de Mônica Bérgamo, na Folha de São Paulo.
Sua interessante coluna de 21 de fevereiro, no Caderno Ilustrada, reacendeu uma velha discussão sobre doações feitas por empresas a projetos sociais. Com o título de “A Misteriosa sacolinha brasileira de Madonna”, o conjunto de notas de Bérgamo expõe, ainda que não fosse este o seu objetivo, uma ferida que incomoda especialmente os gestores de organizações de terceiro setor na busca de recursos para suas atividades junto às empresas: a lógica excludente do investimento que valoriza mais o resultado de imagem para quem doa do que os impactos gerados aos beneficiários da doação.
A foto publicada na coluna é uma peça ilustrativa desse desconforto. Um primor que remete a algum lugar do passado, entre os anos 70 e 80, quando house organs de empresas publicavam com destaque fotos de executivos entregando cheques de doação para comunidades pobres.
Na imagem, uma Madonna posa embevecida, segurando o cheque gigante de um milhão de dólares, ao lado do gari Renato Sorriso e do presidente da fabricante de cerveja, responsável pela doação. Os três vestem, óbvio, a camisa do patrocinador. Como convém a uma fotografia do tipo, sorriem discretos. Renato Sorriso sorri porque esta é a marca com a qual ele ganha algum dinheiro no Carnaval, o executivo porque imagina estar valorizando os ativos da marca que paga o seu salário e Madona porque usou a sua marca pessoal para beneficiar uma outra marca que criou, a SFK- Success For Kids, organização que promove a educação de jovens por meio de lições de cabala.
A foto, é claro, evoca diferentes sentimentos. Uma primeira reação previsível é considerar simpático o gesto de doação a uma organização que trabalha com crianças pobres. Afinal, somos humanos. À exceção dos sociopatas, tendemos a apreciar gestos de altruísmo. Uma segunda reação, igualmente previsível, consiste em tentar compreender o contexto da história, isto é, por que Madona está ali e como conseguiu levar para casa um cheque cujo valor a maioria das organizações sociais brasileiras demora anos para arrecadar.
A coluna explica o fato, embora talvez nem fosse necessário nesse mundo em que até as crianças já sabem que aparecer na TV tem um preço. Ao receber um convite da empresa para exibir-se no Carnaval do Rio, a pop star condicionou sua presença por duas horas à doação de um milhão de dólares para seus projetos sociais. Negócio fechado, a foto sela o acordo combinado entre as partes. De Madona, é provável que muitas pessoas aprovem o seu gesto desprendido de “ceder” o cachê para uma organização social. E que outras tantas enxerguem no ato apenas mais uma lance de autopromoção. Da empresa, muitas pessoas poderão achar que ela fez a sua parte, ainda que, na origem, não tivesse a intenção de apoiar a causa da artista. Não cabe aqui, por horror à ideia de julgamento moral, questionar o quanto a intenção do gesto aumenta ou diminui a sua importância. Mas sim avaliá-lo sob a lógica do que se convencionou chamar de investimento social privado, isto é, o repasse de recursos privados para projetos e causas sociais.
No fim da década de 1990, era comum tratar a Responsabilidade Social Empresarial como sinônimo de filantropia. Naquele tempo, o debate mal se iniciara, os conceitos estavam frouxos e as empresas enxergavam no “núcleo” social do novo termo uma espécie de guarda-chuva para abrigar seus projetos de relações institucionais voltados às comunidades. No esforço de mostrar que a noção de RSE era mais ampla, e que a filantropia constituía uma pequena parte mas não o todo, os pregadores do novo movimento passaram a dar menor importância, em seus discursos, à atuação comunitária, sob o argumento de que os negócios como um todo produzem mais impactos sociais e ambientais do que este ou aquele projeto social isoladamente. Uma maneira de reduzir sua importância relativa era associá-lo a práticas assistencialistas, pouco transformadoras.
Na primeira metade dos anos 1990, observou-se uma transição do conceito de filantropia para o de investimento social privado. E não foi só uma mudança de nome, mas no modo de fazer. Enquanto o gesto filantrópico caracterizava-se por uma doação feita a partir de processos baseados na boa vontade individual, sem uma noção clara de resultados, o do investimento social privado passou a incorporar uma certa racionalidade empresarial de planejamento, definição de estratégias, monitoramento e avaliação.
No primeiro modelo, sem um diagnóstico de necessidades, acabava-se quase sempre por investir recursos em soluções parciais, menos eficazes, que reduziam os efeitos sem atingir as causas dos problemas. Com a adoção do segundo, as ações tornaram-se mais específicas. Ganharam foco, indicadores, profissionalismo, métodos mais eficientes.
O fato registrado pela foto de Madonna segurando o cheque milionário remonta de algum modo à pré-história da Responsabilidade Social Empresarial em que empresas doavam dinheiro para causas de grife e não realizavam investimento social estratégico. Isso fica ainda mais latente quando se verifica, a partir da leitura de outras notas produzidas por Mônica Bérgamo, que as ONGs brasileiras “apoiadas” pela SKF de Madonna, uma espécie de fornecedora de cursos de capacitação, reclamam de muito holofote, pouca atenção da parceira e resultados para lá de inconsistentes. Sem planejamento, estratégia, monitoramento e avaliação a doação é mera filantropia. Não resolve os problemas sociais do país. Não muda realidades. Não faz de Madonna – que em suas andanças pelo Brasil já captou U$ 10 milhões - uma pessoa melhor do que ela é. Nem acrescenta tudo o que se imagina em termos de imagem para os que doam, até porque a sociedade evolui e com ela o senso crítico de que as soluções para os complexos problemas socioambientais exigem mais do que flashes e boas intenções.
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