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COLUNAS


Maria Ignez Mantovani Franco


Graduada em Comunicação Social, com especialização em Museologia; cursou doutorado em História Social na Universidade de São Paulo. É doutora em Museologia, pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, de Lisboa, Portugal.

Diretora da empresa EXPOMUS – Exposições, Museus, Projetos Culturais, por ela criada em 1981, atuou em cerca de 250 projetos de exposições nacionais e internacionais de arte e cultura brasileira, na América Latina, Estados Unidos e Europa. No Brasil desenvolve, pela Expomus, projetos museológicos, socioeducacionais e ambientais, em colaboração com instituições e museus nacionais; além de realizar palestras e conferências de capacitação em museologia e gestão cultural.

Foi membro de diversos Conselhos de Museus brasileiros e participa de organismos nacionais e internacionais, tais como AAM - American Alliance of Museums e ICOM - International Council of Museums. Representou o ICOM Brasil no Conselho Nacional de Política Cultural (2008-2009) e no Conselho Consultivo do Patrimônio Museológico do Instituto Brasileiro de Museus/MinC (2009-2010). Entre outras atribuições, é vice-presidente e representante para a América Latina do CAMOC – Comitê Internacional de Museus de Cidade do ICOM, foi diretora (2006-2011) e é a atual presidente do Conselho de Administração do ICOM Brasil (2012-2015).

O tempo como norteador da memória

              Publicado em 24/01/2014
Folha de S. Paulo, em 23/10/2013, veiculou matéria de interesse baseada nos subsídios que coletou junto a historiadores que levantaram a história das relações entre as empresas alemãs e o regime nazista, na primeira metade do século XX.  
 
Uma delas, a Dr. Oetker, apesar de uma das mais conceituadas empresas alemãs, também atuante no Brasil, surpreendeu o público ao revelar sua história por meio do estudo dirigido por Andreas Wirsching, historiador da Universidade Ludwig Maximillian, de Munique, que concluiu ter havido obscuras relações da empresa com o Terceiro Reich. 
 
Jürgen Finger, historiador que também participou desse estudo, afirma que igualmente outras empresas alemãs têm autorizado e mesmo empreendido este tipo de pesquisa, pois o tempo decorrido possibilita revolver a história, uma vez que os empresários, então protagonistas, já faleceram. Mesmo que os atuais dirigentes sejam descendentes dos empresários que outrora tomaram as decisões de apoiar e favorecer o Terceiro Reich, trata-se agora de uma nova geração movida por diferentes princípios. Os atuais dirigentes avaliam que muitos anos se passaram, que estamos em outro século, e que a relação das empresas com a sociedade pressupõe hoje uma transparência tal que escamotear o passado já é considerado um equívoco de estratégia empresarial.
 
Um sistema de colaboração que trouxe mútuos benefícios originou-se da concessão de vultosas quantias ao regime nazista por empresas de renome, sistema esse também reforçado pela importante vinculação dos próprios empresários ao partido de Hitler.
 
Um dos pontos mais contundentes desta história recentemente levantada aponta para o fato de que a grande maioria das empresas alemãs, inclusive algumas que se opunham às atrocidades nazistas, acabaram por se aproveitar e adotar em suas subsidiárias, quando não em suas unidades principais, os serviços de vítimas do período nazista, condenadas a trabalhos forçados. A esse respeito, contamos com o depoimento atual da pesquisadora Ilona Strimber, cujos pais sobreviveram ao Holocausto. Ilona nos faz o seguinte relato, que comprova que a prática era comum durante o regime:
 
“Meus pais, Hildegard e Arno Simon, judeus alemães, foram requisitados para trabalhos forçados em Berlim a partir de setembro de 1939, lá permanecendo até janeiro de 1943.
Minha mãe trabalhava em turno de 12 horas na empresa de baterias para armamentos Pertrix, que fazia parte do conglomerado da família Quandt, que hoje inclui a afamada marca alemã BMW. 
Meu pai trabalhou na fábrica de fios Spinnstoffabrik Zehlendorf e por pouco não ficou cego por causa dos vapores letais que os gases utilizados na linha de produção emanavam. Aos judeus era proibida a ingestão de leite, que diminuiria os efeitos nocivos que esses gases causavam também à respiração A violência com que eram tratados era conhecida por todos. 
Os judeus e demais prisioneiros dos campos de concentração que lá faziam trabalho escravo eram requisitados por todas as empresas alemãs.
Com trabalho diário de meu pai, também de 12 horas, muitas vezes o casal não se via por meses, assim como ocorria com tantos outros, um trabalhando durante o dia e o outro à noite, num desencontro criado propositalmente, para que não se espalhassem as notícias sobre a deportação...” 
 
Esta sequência de revelações, segundo o historiador Joachim Scholtysek, "teve início por volta da virada do milênio, quando o Deutsche Bank encomendou um amplo estudo a esse respeito". Pouco depois, várias empresas seguiram este exemplo e, hoje, pode-se dizer que muitas já autorizaram a divulgação de pesquisas aprofundadas a respeito de seu passado, mesmo quando sombrio.
 
Os historiadores acreditam que as pesquisas desenvolvidas nos últimos anos, sobre diferentes empresas, têm como pano de fundo o fato de que mesmo os órgãos públicos enfrentaram a revisão histórica com coragem, notadamente na Alemanha, que empreendeu, ao longo do século XX, um sólido programa de compensação de danos às vítimas do período nazista. As empresas não poderiam ficar atrás das ações governamentais, e por esse motivo acharam preferível se antecipar a eventuais revelações que pudessem lhes ser desfavoráveis; por outro lado, a opinião pública e as famílias das vítimas mantiveram uma forte pressão, ao reivindicar uma necessária revisão histórica, obrigando as empresas a baixarem a guarda e autorizarem investigações aprofundadas, que hoje contam com a colaboração de várias universidades, em sua maioria, alemãs.
 
Esta disposição em revisar a história, mesmo que tardia, nos mostra como o tempo é um forte aliado do esclarecimento e da revelação dos acontecimentos históricos. Fatos e documentos antes considerados sigilosos e mantidos sob forte controle do Estado ou das empresas, por seu poder de revelar um passado pouco honroso, passam a ganhar transparência com o passar dos anos e vêm a público com a força que lhes é devida. Neste sentido, nossa sociedade aprecia o gesto transparente e corajoso de as empresas revelarem suas mazelas passadas, e estes momentos de aparente fragilidade podem vir a representar um novo alinhamento, um novo pacto da empresa com a sociedade, com benefícios para a sua imagem corporativa.
 

Com igual intenção, os países latino-americanos, e entre eles o Brasil, têm conduzido pesquisas surpreendentes sobre os seus distintos períodos históricos sob regimes de exceção, constituindo instituições dedicadas à memória das vítimas e à elucidação de tais fatos e movimentos, favorecendo o entendimento das novas gerações sobre os diferentes contextos históricos e políticos de seu próprio país. Caberá às empresas eventualmente envolvidas nesses processos de revisão histórica reconhecerem suas fragilidades do passado e enfrentarem o presente com uma nova conduta transparente e cidadã. 


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