O "pai da internet" adverte sobre a memória digital
Há poucos dias, li no O Estado de São Paulo uma matéria de Ligia Aguilhar, que afirma ter Vint Cerf, vice-presidente do Google e co-criador da internet, declarado sua preocupação com o fato de que as fotos salvas unicamente em arquivos digitais poderão se perder para sempre, à medida que hardware e software tornem-se obsoletos.
Segundo ele, em declaração à BBC, “a compatibilidade retroativa não é sempre confiável”. Complementa, de forma ainda mais radical, que “teme que as futuras gerações possam não ter nenhum registro do século XXI, o que levaria a humanidade a uma Idade das Trevas Digital”.
Temeroso de que “venhamos a acumular cada vez mais arquivos de conteúdo digital, sem sabermos exatamente do que se trata”, Cerf propõe uma solução curiosa para resolver o dilema: a criação de um museu na nuvem, para preservar a memória digital das características de cada software e de cada hardware, lutando assim contra a obsolescência imposta pelo avanço da tecnologia e a dinâmica incessante do tempo presente.
O conceito proposto por Cerf foi chamado de “pergaminho digital” e a ideia já está sendo desenvolvida por um pesquisador da Universidade Carnegie Mellon, nos EUA.
Cabe-nos, então, refletir sobre as principais referências que Ligia Aguilhar inclui em seu artigo.
Não deixa de ser interessante que um dos pais da internet sugira a ideia da criação de um museu na nuvem para repertoriar estruturas, caminhos, sistemas, hardwares e softwares digitais. Fica evidente, na solução proposta, o reconhecimento da intrínseca capacidade do museu de ser o elo entre os tempos – e nunca foi tão clara essa relação, esse nexo de sentidos que envolve a necessidade de resgate da memória, para salvaguardar o conhecimento, passado e presente, para o futuro.
O lugar da memória é, portanto, algo que precisa estar resguardado, assegurado, mantido e alicerçado em códigos reconhecíveis de uma geração a outra. Enfim, é para isso que serve o museu, não é? O museu é o signo de conexão das memórias, sejam elas digitais, documentais, emocionais, enfim, humanas. Ver um homem de linhagem digital reconhecer o lugar do museu como receptáculo e conector de memórias é, sem dúvida, a melhor comprovação da missão, dos objetivos e das responsabilidades de um museu.
Quando Cerf fala da preocupação com os “arquivos de imagens digitais”, ele está referenciando o seu tempo, o nosso tempo presente, que elege, articula e legitima a imagem acima de qualquer outra forma de conhecimento ou expressão. No entanto, ele deixa claro, em suas advertências, que elas são válidas para os arquivos da internet como um todo.
Poderíamos então dizer que seria possível pensar num museu virtual capaz de salvaguardar todos os arquivos digitais, não só de imagens, para o futuro? Estaríamos falando de um megaespaço museológico na nuvem, que sequer conseguiríamos dimensionar, capaz de abrigar com segurança nossos arquivos, nossa memória? Poderíamos pensar em musealizar a própria internet? Não creio que se possa pensar nestes termos. O que Cerf empresta do conceito de “museu” são as noções de segurança, preservação, organização de conteúdos e, acima de tudo, capacidade de conexão e comunicação com o futuro.
Outro valor importante que a lógica museológica poderá adicionar às preocupações de Cerf é a questão do descarte. Ele próprio se refere “à necessidade de se saber exatamente o teor dos arquivos”, ou seja, é intrínseca à memória e, portanto, ao museu, a ideia de seleção, de opção, de descarte. O ato de identificar, catalogar, significa reconhecer e ser possível reencontrar um elo perdido de determinada cadeia, quando necessário. Uma memória, quando mal referenciada, não tem destinação, de nada serve, porque nada lhe atribuiu sentido. Por isso os museus não apenas coletam, como também selecionam, catalogam e descartam o tempo todo, ato esse sempre corajoso, porque pressupõe a eleição de algo que deverá ser mantido, em detrimento do que foi descartado.
De fato, o valor do conhecimento museológico está em estabelecer políticas claras de reconhecimento, pesquisa, seleção e descarte dos registros humanos. Por mais avançada que seja a tecnologia, por mais possantes que sejam os equipamentos e por mais ousados que possam ser os sistemas, jamais poderemos prescindir da capacidade humana de discernir, de selecionar, de orientar, de escolher e de descartar. E isto se aplica a vários aspectos da vida humana.
No campo da memória empresarial, por exemplo, os centros de referência e documentação carregam, eventualmente, o estigma de uma catalogação deficitária, hiatos de memória, lacunas de acervo, restando por vezes coleções não identificadas a contento; em alguns casos, a informação repousa sobre suportes obsoletos, que podem vir a frustrar tentativas de migração de conteúdos para plataformas “perenes”, que passam a ser cada vez mais elementos estratégicos de preservação.
Indo ainda mais a fundo, fica implícita na fala de Cerf a questão de que nada somos ou seremos sem a memória. Enfim, saber que poderemos viver uma “Idade das Trevas Digital” é um alerta a ser difundido, pois a memória é algo intrínseco e conectado de forma integrada – a ausência da memória preservada pode representar a queda no abismo insofismável do tempo.
Os artigos aqui apresentados n�o necessariamente refletem a opini�o da Aberje
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