Recentes invasões de centros de pesquisas por ativistas reacendem o velho debate sobre o uso de animais em experimentos voltados à área da saúde. Aliás, a ação dos protetores das cobaias já chegou às faculdades de medicina: na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, uma aula prática sobre a realização de traqueostomia (procedimento que livrou da morte milhões de pessoas ameaçadas de sufocação, em todo o mundo) foi interrompida por um protesto em defesa dos porcos utilizado pelo professor para a demonstração da técnica – aliás, prática permitida.
A questão, pelo jeito, não chegará tão cedo a um consenso. Mas talvez uma maior disseminação de informações corretas, por parte dos pesquisadores, e uma melhor avaliação das consequências das invasões, por parte dos manifestantes, permitam estabelecer limites civilizados entre os adeptos das duas vertentes de opinião. Essa conciliação evitaria, por exemplo, a perda de anos de custosos estudos científicos e o atraso na descoberta de novos e esperados medicamentos que curem doenças letais ou aliviem o sofrimento dos pacientes – tanto humanos quanto animais. Outro fator fundamental para a, digamos, pacificação nesse campo adviria do conhecimento e do respeito, pelas duas partes, à legislação brasileira sobre experimentações científicas com animais. Aliás, é importante destacar, as nossas leis nesse sentido estão entre as melhores do mundo.
Boa parte da excelência desses parâmetros, que balizam a também reconhecida qualidade de órgãos e conselhos de fiscalização, se deve a uma das muitas contribuições aos saberes e à educação realizadas pelo médico William Saad Hossne, eleito Professor Emérito CIEE/Estadão 2013. Ele se destaca pela militância bem sucedida nessa área polêmica, embora estratégica para a própria evolução das condições de vida da sociedade. Mestre em bioética, ele mergulhou num campo transdisciplinar que envolve a biologia, as ciências da saúde, a filosofia e o direito. Com essa sólida base, a bioética estuda a dimensão ética dos modos de tratar a vida humana e animal em pesquisas científicas e suas aplicações. Em outras palavras, busca aliar uma perspectiva humanista aos avanços tecnológicos na área da saúde, entre os quais despontam temas delicados – e ainda não consensuais –, como clonagem, fertilização in vitro, transgênicos, pesquisas com células-tronco, uso de animais em pesquisas e outros.
Ciclicamente, essa questão volta ao debate, pois, como ensina Saad, cada salto da ciência cria problemas éticos, que não podem ser resolvidos apenas por cientistas de uma área. Ele alerta: é necessário chamar outras disciplinas para criar um balizamento ético, pois, sem esse cuidado, a sociedade pode se autodestruir. Recorrendo à generosa partilha de ideias, que o professor Saad promoveu ao longo dos seus bem vividos (e ainda muito ativos) 86 anos, o século 20 foi palco de cinco revoluções: a atômica, a molecular, a das comunicações, a do espaço sideral e a da nanotecnologia. Agora, já estão aí, no dia a dia, os sinais de um novo salto, resultante da integração dos cinco anteriores no que se pode chamar de tecnociência. A ética da sexta revolução herdará algumas características da bioética, cuja prática implica a livre escolha de valores. Ou seja, coação, coerção, sedução, exploração, manipulação ou qualquer mecanismo de inibição a essa liberdade são fraudes incompatíveis com o exercício ético.
O exercício da bioética, como ainda ensina o mestre, permite a resolução de conflitos que acompanham os avanços da ciência, com o respeito a valores que sempre pautaram as grandes conquistas da humanidade: humildade, grandeza, prudência e solidariedade. “Como referencial, a solidariedade se articula com os demais referenciais da bioética: autonomia, justiça, equidade, vulnerabilidade, não maleficência, beneficência, prudência (phronesis e sophrosyne), alteridade, responsabilidade, altruísmo”, diz Saad.
Seus escritos mostram que ele também gosta de filosofar. Assim, pergunta: o que faremos com tanto poder concedido pela ciência? A resposta ele encontrou no livro Tempos Interessantes, no qual o historiador inglês Eric Hobsbawn lembra que o mundo não vai melhorar sozinho. Mas certamente melhorará – e muito – se contar com posturas solidárias, humanistas e inteligentes, como as adotadas por Saad ao longo de sua trajetória, na qual buscou conciliar.
Artigo publicado no jornal Correio Braziliense (31 de outubro/2013, página 19)