Ano 8
Nº 29
4º Trimestre de 1998

 

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A missão do retor

      

No ambiente competitivo, onde a comunicação é fator crítico de resultados, convém não esquecer a importância da prática cotidiana da ação retórica.

por Tereza Halliday (*)
 

Entusiasmados ou resignados, os comunicadores empresariais enfrentam novas cobranças profissionais: serem co-gestores da empresa, tratarem a comunicação organizacional da Nova Era como importante ferramenta estratégica de gestão. Embora o conceito de comunicação organizacional abranja as comunicações empresarial, sindical, eclesial, governamental e outras, neste texto é utilizado como sinônimo de comunicação empresarial. Do meu mirante, onde observo a paisagem com as lentes da Teoria Retórica, olho e suspiro aliviada: até que enfim! Embora com outro nome, estão finalmente assumindo a construção simbólica da realidade empresarial como legítimos agentes retóricos que são.

Este papel de retor não deve constranger nem envergonhar. Somos todos seres retóricos - construímos a realidade com palavras e outros símbolos (daí a expressão "construção simbólica da realidade"), a fim de mudar ou reforçar percepções, crenças, opiniões e cursos de ação. Agimos retoricamente todas as vezes em que definimos as coisas da maneira como gostaríamos que os outros as viessem, seja afirmando "Que lua mais linda!", "Este imposto é uma vergonha", ou "Nossa empresa está comprometida com a construção de um mundo melhor". Retórica é apenas o mais antigo nome para comunicação estratégica.
 

Origem do preconceito

O comunicadores especializados do presente, são retores por excelência: constroem argumentos em prol de sua causa, empresa ou missão. Do discurso científico ao discurso poético, do discurso amoroso ao discurso jurídico, todas as definições, explicações e justificações de uma realidade são revestidas de retoricidade. Uma circular sobre novo horário de trabalho, o relatório anual aos acionistas, a cerimônia de entrega de prêmios à empresa campeã de conscientização ecológica, o anúncio institucional e o convênio de parceria para restaurar um edifício histórico fazem parte do discurso organizacional e são revestidos de diferentes graus de retoricidade - são mensagens para exercer influência pelo compartilhamento de significados, apoiadas pela lógica, pelas emoções e pela credibilidade.

Desde a Antiguidade, a prática retórica consiste no uso da argumentação como instrumento de gestão dos negócios humanos - uma arte e uma estratégia, antípoda do uso da força para resolver conflitos. No século 19, a Retórica adquiriu má fama, passando o termo a designar estilo rebuscado, discurso com floreios demais e substância de menos. Nos dias de hoje, políticos e empresários empulhadores contribuem para manchar a reputação desta "respeitável senhora", que, na companhia de profissionais respeitáveis, pode evitar e contornar crises de legitimação, ajudar a construir o bom nome de uma organização, contribuir para mudar-lhe o perfil ou mantê-la benquista.

Graças à pesquisa acadêmica deste século e a estudiosos do porte de Chaim Perelman, podemos falar numa Nouvelle Rhétorique. A retórica despe-se das conotações negativas advindas dos abusos de retores irresponsáveis e retorna a seu sentido denotativo de "ação comunicativa para influenciar o ambiente à nossa volta" (Perelman, Chaim e Olbrecht-Tyteca, L. - Tratado da Argumentação, Ed. Martins Fontes, 1994) - exatamente o que as empresas fazem, sem ainda reconhecer que estão agindo retoricamente.

Agir retoricamente é "apresentar razões para", através de argumentos explícitos e implícitos. A comunicação organizacional é um conjunto de atos retóricos cuja argumentação evoca o passado, justifica o presente e prepara o futuro de uma pessoa jurídica - seja associação de bairro, seja empresa multinacional.
 

Situações retóricas

A necessidade de agir retoricamente é uma contingência humana e organizacional. Se houvesse uma sociedade em perfeito estado de concordância, não haveria necessidade de retórica. Todo comunicador empresarial sabe que é problemática a convivência de uma organização com seus públicos relevantes (fornecedores, governo, clientes, competidores, jornalistas, grupos de pressão etc.). Dessa convivência nem sempre tranqüila e calma surgem "situações retóricas". Esta expressão designa uma circunstância que, do ponto de vista de um comunicador individual ou institucional, é imperfeita e precisa ser influenciada através de determinado discurso potencialmente transformador da situação (Bitzer, Lloyd - Functional Communication - a situational perspective. in White, Eugene E. (org.), Rhetoric in Transition - Studies in the nature and uses of Rhetoric, Penn State University Press, 1980).

Vejamos uma situação retórica hipotética a exigir um discurso reparador: ante denúncia e constatação de que a embalagem de um medicamento foi violada, com a presença de substância venenosa em sua composição química, o laboratório atingido imediatamente divulgará mensagem esclarecedora reafirmando suas credenciais de competência e responsabilidade, ao mesmo tempo em que anuncia medidas efetivas (como a retirada do estoque das prateleiras).

Existem situações retóricas menos dramáticas porém não menos prementes: por exemplo, os gestores da empresa percebem que a marca de seu produto não tem tanta visibilidade como gostariam. Cria-se então um prêmio artístico com o nome do fundador da empresa ou - ainda melhor, de um grande artista do país - a ser conferido anualmente com ampla campanha de divulgação da persona organizacional como benfeitora das artes.
 

Fazer crer

As relações entre as empresas e seus públicos relevantes são eivadas de situações retóricas nas quais as coisas são de um jeito e os gestores/retores gostariam que fossem de outro. Urge influenciar a situação pelo discurso e outros atos. Toda ação comunicativa de uma empresa premida por uma situação retórica responde a alguma necessidade de legitimação, isto é, de construir, restaurar e manter a crença no valor da organização como entidade competente e decente.

As empresas precisam legitimar-se continuamente porque, enquanto pessoas jurídicas, querem desempenhar sua função econômica e/ou social nos termos mais vantajosos possíveis para si mesmas. Isto requer a cooperação de terceiros. É uma questão de sobrevivência sistêmica manter o equilíbrio homeostático com as outras partes inter-relacionadas e interdependentes do macro-sistema social - os outros grupos e organizações. Assim sendo, uma empresa é compelida a ser advogada de si própria a fim de fomentar, conseguir e manter a sua legitimidade.

A legitimidade de uma empresa é a sua aceitabilidade aos olhos dos outros, em consonância com os valores, necessidades e interesses de seus públicos relevantes. Trata-se de um recurso volátil, difícil de mensurar, mas que traz conseqüências desastrosas quando é desperdiçado por má gestão. São conhecidos casos de deslegitimação de uma empresa farmacêutica por produto acidentalmente adulterado, de uma indústria química por escapamento de gás venenoso atingindo zona residencial; sabe-se de empresas convivendo com acusações de suborno, insalubridade no local de trabalho ou indiferença a projetos comunitários que busquem seu apoio. A vida das organizações é dura: ou uma empresa está no banco dos réus, ou está correndo o risco de ali sentar-se. Por isto, precisa de um discurso legitimador permanente e congruente.

 
Atos legitimadores

A construção simbólica da realidade organizacional se faz por meio de atos retóricos e atos administrativos. Construir simbolicamente a realidade é apresentar argumentos bem fundamentados, que definam as coisas em termos favoráveis à organização. Atos retóricos são atos de comunicação verbal e não-verbal (mensagens em resposta a uma situação problemática, do ponto de vista da empresa), que visam manter ou mudar percepções, crenças e comportamentos. Atos administrativos são decisões implementadas para tornar a organização persona grata junto aos setores do ambiente externo dos quais ela depende para sobreviver. Servem de apoio aos atos retóricos e são também investidos de significados. Tudo na vida quer dizer alguma coisa a mais do que o propriamente dito ou feito. Cada coisa simboliza alguma coisa. Isto é tão inevitável quanto os impostos e a morte.

Um bom exemplo de argumentação legitimizante é o engajamento de empresas na causa ecológica, mesclando o discurso ambientalista com programas de apoio à conservação do meio ambiente. Neste caso, o grande argumento é o próprio engajamento e não apenas a sua parte discursiva, expressa, talvez, no slogan "Empresa X - protetora da natureza". Outro caso também ilustra a construção simbólica da legitimidade organizacional: um acidente automobilístico envolvendo caminhões da Empresa Y, transportadores de combustível, que se incendiaram na estrada fazendo mortos e feridos ao colidir com um ônibus da Empresa Z. As organizações envolvidas divulgam notas oficiais de pêsames às famílias enlutadas e de esclarecimento à opinião pública, prometendo também rigorosa investigação e providenciando o custeio de despesas hospitalares e sepultamentos. Publicam anúncios convidando para a missa de sétimo dia em memória das vítimas e informam sobre as redobradas medidas de segurança tomadas quanto ao transporte de combustíveis. Os atos administrativos e os atos retóricos aqui descritos se apóiam mutuamente. O discurso precisa "bater" com as demais práticas legitimizantes.

Aliás, a dicotomia discurso versus ação tem sido nociva tanto ao estudo quanto à prática da Comunicação. A palavra é um tipo de ação. Quem fala ou escreve atua sobre o mundo porque o reconstrói ao defini-lo. Quando a ação pelo discurso é incongruente com outros atos do mesmo indivíduo ou empresa, temos ou um caso de "esquizofrenia" ou de mau-caratismo, que em nada ajudam na legitimação desejada.
 

Credenciais de legitimação

O discurso organizacional legitimizante geralmente inclui a apresentação de credenciais de competência, empatia e idealismo que constroem uma persona para a empresa: ela deve agir como útil, compatível com os interesses e valores de seus públicos e de maneira altruísta. A empresa que deseja atuar nos seus ambientes relevantes por meio de atos retóricos legitimatórios, oferecerá vantagens, prometerá segurança e invocará aspirações. E secundará esses argumentos com atos administrativos que respondam à questão presente na cabeça do interlocutor: "Por que devo acreditar nisto?".

Os grandes temas do discurso organizacional legitimizante são a utilidade das atividades da empresa, a compatibilidade de seus objetivos e interesses com aqueles nutridos pela sociedade, e a transcendência, que consiste em definir as necessidades organizacionais intrínsecas, de sucesso operacional, econômico e político, em termos de um bem maior extrínseco à organização. Definir, explicar e justificar o valor da empresa como entidade competente e decente implica - sempre - em realizar um merger entre atos retóricos e atos administrativos, sob pena de deslegitimação.
 

Construção diária

Atos retóricos, retoricidade, argumentação, realidade retoricamente construída, retor... Por que essa terminologia da Teoria Retórica é importante para a Comunicação empresarial? Vocabulários ampliam nossa visão de mundo. Quanto mais palavras temos para um mesmo fenômeno, mais alternativas para pensar problemas e resolvê-los. Uma visão retórica da comunicação empresarial ilumina pelo menos dois aspectos do papel dos gestores de comunicação:

1) O comunicador empresarial é um retor. Aquele que usa palavras e outros símbolos para argumentar em favor da organização. O conceito de argumentação é o cerne da ação retórica. Argumentos não são apenas assertivas para persuadir, mas conjuntos de razões apresentadas, nunca somente com palavras, sempre envolvendo todos os recursos e comportamentos que validem as palavras.

2) O comunicador empresarial é um negociador de significados. O conceito de retórica ultrapassou a noção histórica de arte de utilizar os meios disponíveis de persuasão para uma definição mais abrangente e moderna: retórica é a arte de negociar significados, definindo a realidade de um certo ponto de vista para exercer influência sobre situações. Dentro dessa perspectiva, o discurso empresarial é composto por todos os aspectos da vida da organização - os comportamentos de seus membros, as decisões implementadas, os rituais e as mensagens stritu sensu -, em texto ou fala.

Ser co-gestor da empresa é ser operário da construção diária da realidade organizacional. A ação retórica responsável é parte integrante e imprescindível dessa construção.

(*) Tereza Halliday é Ph.D. em Comunicação Pública pela Universidade de Maryland (EUA), analista de discurso organizacional e autora, entre outros, de O que é retórica, Ed. Brasiliense (1990) e A retórica das multinacionais - A legitimação das organizações pela palavra, Ed. Summus (1987). E-mail: solombra@hotlink.com.br

 

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