Ano 7
Nº 24
3º Trimestre de 1997

 

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Em busca do tempo perdido

     

O baixo nível de escolaridade do trabalhador brasileiro estimula empresas e entidades a criar alternativas para enfrentar esse drama.

Os ventos da globalização trouxeram ao país um dilema incômodo mas igualmente desafiador: no cenário de competitividade mundial, como será possível estar preparado para os complexos desafios do século 21 com o alarmante atraso educacional brasileiro?

A resposta à essa indagação já não está mais restrita ao poder público ou aos organismos educacionais oficiais. A sociedade, as entidades de apoio à educação e organizações empresariais passaram a ocupar um papel de relevância na condução do país à uma realidade educacional menos adversa. O objetivo é atingir, tão logo seja possível, os patamares de conhecimento e escolaridade mais adequados ao desenvolvimento social e econômico do país nos próximos anos.

Verificada pela lupa da estatística, é assombrosa a distância entre o nível educacional brasileiro e o de países desenvolvidos ou em desenvolvimento. O censo do IBGE de 1996 revela que 13,6% da população do país com mais de 10 anos têm menos de um ano de instrução escolar. Pelos dados do instituto, a taxa de analfabetismo funcional – categoria que, segundo critérios da Unesco, corresponde a menos de quatro anos de escolaridade –, era de 35,1% no ano passado; muito superior a de países como Chile (24%), Uruguai (7%) e Coréia do Sul (1%).

Em números gerais, estima-se que quase um quinto da população brasileira com idade superior a 15 anos não tenha conhecimentos básicos para ler nem escrever, o que corresponde a mais de 20 milhões de cidadãos praticamente incapacitados do ponto de vista profissional e material. O acesso da mão-de-obra brasileira ao ensino fundamental é insuficiente até em comparação à situação observada em seus vizinhos da América Latina: o nível de escolaridade dos trabalhadores do país é de 3,2 anos, contra 8,7 anos dos argentinos e 7,5 anos dos chilenos.
    

Novos tempos

Malgrado o quadro dramático, alguns avanços começam a ser notados. A própria taxa atual de analfabetismo, ainda que extremamente preocupante, é bem inferior à de 1950, quando 50,6% da população brasileira com mais de 15 anos não sabiam ler nem escrever. Hoje, a formação básica é considerada um fator determinante para a inserção no mercado de trabalho. Pesquisa realizada pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), de São Paulo, que analisou a distribuição de ocupados por graus de instrução na região metropolitana da capital, indica que essa tendência é irreversível.

Segundo dados do Seade, em 1996, 32,8% da mão-de-obra da indústria possuía o segundo grau completo, contra 20,2% em 1986. No comércio, verificou-se para o mesmo indicador um índice de 30,3% no ano passado, contra 19,9% em 1986. "A maior incidência de anos de escolaridade no mercado vem ocorrendo com uma velocidade muito grande na Grande São Paulo", confirma Felícia Madeira, diretora de análise sócio-econômica do Seade. "Atualmente, terminar a oitava série é quase insuficiente", diz ela. "Já se começa a exigir com maior freqüência o segundo grau completo."

Para a diretora do Seade, se por um lado esse indicador reflete o crescente estreitamento do mercado, por outro abre novas perspectivas para os programas e políticas educacionais. "A questão do aumento da exigência de escolaridade, que provoca a exclusão dos menos escolarizados, em geral é vista exclusivamente pelo seu lado perverso, mas há também um lado positivo." Segundo Felícia, "as pessoas perceberam na educação uma credencial da importante em termos de seleção, independentemente da tarefa a ser desempenhada".

O resultado desse processo é uma mudança positiva de mentalidade da população com relação à educação. "A pobreza, que é o nosso grande problema, está associada à desigualdade de renda, que por sua vez está intimamente ligada à desigualdade escolar", diz a diretora do Seade. "A transformação desses valores, portanto, começa a provocar uma revolução silenciosa no país."
    

Caminho sem volta

A exigência de formação educacional é um fator irreversível e as empresas estabelecidas no país começam a direcionar suas atividades com base nesse pressuposto. A Volkswagen, por exemplo, ao instalar sua fábrica de caminhões em Resende (RJ), levou em conta, além das vantagens fiscais e materiais oferecidas, o sistema de ensino da cidade – considerado modelo pelo Unicef, em 1993. Não é para menos: o município destina 35% de seu orçamento à educação. Cada aluno custa cerca de 500 reais, quase 70% acima dos 300 reais estabelecidos pelo Ministério da Educação e Cultura.

O mesmo critério foi adotado pela Mercedes Benz ao escolher Juiz de Fora (MG) para estabelecer sua nova fábrica de automóveis: além de uma universidade federal, a cidade dispõe de infra-estrutura adequada à orientação da empresa de só recrutar trabalhadores com o curso secundário completo. Na região fabril do ABC paulista, em contrapartida, somente 30% da população ativa têm esse nível de escolaridade.

As novas regras de seleção da mão-de-obra têm lá o seu fundamento. A concorrência condiciona as companhias a dispor de profissionais preparados para assimilar as novas tecnologias e compreender a sofisticação dos processos de produção. O raciocínio parte de um pressuposto simples: nenhuma empresa pretende correr o risco de colocar um equipamento de milhares de dólares na mão de um operário sem qualificação.
    

Alternativas viáveis

Além do recrutamento seletivo, diversas fórmulas estão sendo adotadas pelas empresas em operação no Brasil para reverter o baixo nível de qualificação profissional de seus empregados. Grande número de companhias já adota programas de treinamento e promove cursos de formação escolar básica. O objetivo é transformar os funcionários em profissionais mais habilitados ao pleno desenvolvimento de suas funções.

O exemplo também vem sendo seguido por entidades como o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP), que reúne 2 mil empresas e é um dos maiores sindicatos empresariais da América Latina. Além de manter centros de treinamento profissional e convênios com entidades de capacitação em diversas cidades, o Sinduscon promove, desde 1991, dois programas específicos destinados à melhoria da qualidade da mão-de-obra do setor (no que diz respeito a condições de trabalho e segurança) e à redução do nível de desperdício de materiais de construção.

O primeiro, chamado de "Construção da Cidadania", ensina trabalhadores nos canteiros de obras a ler, escrever e realizar operações aritméticas básicas. "Por meio desse curso, que corresponde ao primeiro ano do primeiro grau, já foram alfabetizados cerca de 1.200 trabalhadores", afirma Sérgio Porto, presidente do Sinduscon. Já o "Programa Qualificação Profissional", promovido em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e prefeituras municipais, oferece cursos de formação de pedreiros, pintores, carpinteiros e até mestres de obras. "Mais de 35 mil trabalhadores já passaram pelo programa, com excelentes resultados", diz Porto.
    

Sedimentando a base

Se é crônico o problema da formação de profissionais no país, sua solução vai além da correção das distorções: é preciso também atacar o mal pela raiz. Para tanto, surgiram organizações especialmente destinadas a encurtar o caminho entre o processo de formação educacional e a prática profissional.

Uma dessas entidades é o Instituto Uniemp, criado em 1992 e com sede em São Paulo. Instituído com o objetivo de ser um fórum permanente das relações entre universidades, institutos de pesquisas e empresas, o Uniemp atua no sentido de estimular o relacionamento sistemático entre esses segmentos. A partir da troca de experiências e da atuação conjunta de instituições acadêmicas e organizações empresariais, a entidade busca capacitar tecnologicamente os profissionais e as empresas de modo a promover o desenvolvimento industrial, a rápida adaptação às inovações e a maior competitividade.

Outra instituição que atua no estreitamento das relações entre entidades educacionais, o setor produtivo e futuros profissionais é o Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee), também sediado em São Paulo. Há 33 anos na ativa, o Ciee promoveu a criação de 1,5 milhão de estágios em todo o país – 440 mil dos quais no Estado de São Paulo.

Além de intermediar estágios por meio de convênios com 74 mil organizações empresariais e cerca de 10 mil estabelecimentos de ensino em 22 capitais e 103 cidades brasileiras, o Ciee contribui também para o aprimoramento da formação dos futuros profissionais. Realiza palestras e cursos de orientação a estudantes, fornece informações sobre os processos de recrutamento e seleção das empresas e sobre as peculiaridades do mercado de trabalho.

"O Ciee atua por meio de parcerias, em uma via de mão dupla. De um lado, estamos levando para a empresa o desenvolvimento científico e tecnológico que o estudante recebe na escola; de outro, aproximamos o futuro profissional da realidade empresarial", explica Luiz Gonzaga Bertelli, presidente executivo da instituição. Na sua opinião, essa é uma forma superar as distorções do sistema de ensino, que não capacita apropriadamente o estudante para o desempenho de sua atividade profissional. "À semelhança do que acontece em muitos países, a universidade brasileira não forma, só informa", diz Bertelli. "Somente a partir da prática nas organizações é que o estudante consegue desenvolver seu potencial."

Para o presidente do Ciee, a questão educacional no Brasil é ainda mais complexa: "No mundo inteiro, as escolas surgem em decorrência da necessidade de profissionais de determinado setor, ou seja, primeiro se instala um pólo industrial em uma localidade e depois as instituições de ensino ali se estabelecem. No Brasil, ocorre o contrário. Primeiro se cria a escola técnica e só depois é avaliada a resposta do mercado. É claro que isso gera o desencanto com a profissão e forma milhares de doutores e bacharéis para o desemprego", argumenta Bertelli. "Por isso, a saída é formar profissionais cada vez mais habilitados e com espaço garantido nas empresas, preparados para o desafio da economia globalizada." (HMF)

 

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